Sentado à mesa para o almoço, falei: Fia, frito um ovo pra mim, por favor.
Ao pô-lo na mesa, senti aquele cheiro de coisas minhas passadas e ao saboreá-lo, senti o gosto de minhas lembranças que, naquele instante, se fizerem presentes.
Ah, quem imaginaria! iguaria tão singela revolver...
Ao pô-lo na mesa, senti aquele cheiro de coisas minhas passadas e ao saboreá-lo, senti o gosto de minhas lembranças que, naquele instante, se fizerem presentes.
Ah, quem imaginaria! iguaria tão singela revolver...
Era uma vez uma galinha pedrês. Não tinha o pescoço pelado, era bonita, era pedrês e botava um ovo todo dia, exatamente ao meio dia.
Ah, engraçado, esta história raspada com colher de pau do fundo do tacho da minha memória e, como se sabe, colher de pau não é muito boa raspadeira, sempre deixa farelos. Algumas coisas nesta história são a mais pura verdade, outras nem tanto, ficaram com os farelos no fundo do tacho.
Para começo de conversa, existiu mesmo a galinha pedrês, era minha, lá na nossa casa, quando eu era menino em Coreaú. Altiva, sobranceira, exalava saúde, tinha a cara vermelha, parecia que minava sangue das faces. Aliás, nem sei mesmo se galinha tem cara; mas que era corada e botava um ovo todo dia ao meio dia, isso é verdade.
Naquele tempo que eu era menino lá na minha cidadezinha natal, farinha era gênero de primeira necessidade, assim como o feijão, o arroz e a banha de porco... Para se ter farinha boa e farta era preciso guardá-la em lugar apropriado. Meu pai conservava um grande caixão de madeira de lei: que me lembre, era de cedro, não podia ser umburana, ia botar cheiro e gosto na farinha e farinha não pode ter outro cheiro nem outro gosto que não seja de farinha. O caixão era reforçado por fora com travas de madeira para garantir que não se desmanchasse com o peso de muitos surrões de farinha que desciam, em lombo de jumento, a Serra da Meruoca. Untado, por dentro, com uma gosma, mistura de farinha com melaço de cana de açúcar que, seca, funcionava como impermeabilizante contra a umidade e, além disso, vedava os furos por onde poderiam entrar insetos. Era, assim, tipo container, não tão grande como estes transportados em navios. Tinha uma pesada tampa com dobradiças de ferro que só se abria quando se ia pegar farinha para o almoço ou para outras serventias: pirão de galinha gorda, pirão de leite escaldado, angu, para quem ganhasse de minha mãe um litro de farinha e só tivesse água e sal ─ como tinha gente só com água e sal naquele tempo ─, comia-se também com rapadura; precisava a força de pelo menos dois homens ou de um que valesse por dois para levantá-la. Como ficava pesado, cheio de farinha! Mesmo vazio, não se aluía fácil, não, sempre plantado sobre toras de madeira, que não dava cupim, num canto de parede, para sempre. Ficava afastado das paredes coisa de uns 20 centímetros, espaço suficiente para entrar e sair uma galinha, mas apertado demais para entrar um menino. Foi lá, entre a parede e o caixão, que a minha galinha pedrês ciscou de por um ovo todo dia, pontualmente, ao meio dia; parecia até que tinha um cronômetro no sobrecu.
Por astúcia ou instinto maternal a danada da pedrês fez o ninho bem afastado da entrada do espremido espaço. No inicio da postura os ovos se acumularam no ninho detrás do caixão; não dava para alcançá-los com um braço adulto nem entrar um menino. Aí, foi que ela se enganou! esqueceu que menino daquele tempo era bicho medonho de tinhoso. Um faniquito me atacava só em ver e não poder pegar os ovos. Ficar lá, até virarem pinto, não, não dava. Daí, fiquei matutando: como encontrar um jeito de pescar os ovos sem precisar entrar por aquela brecha que não dava para entrar um menino?
Até que um dia, já havia uns cinco ovos no ninho e ninguém podia pegar. Ninguém, não, porque eu inventei um instrumento de pegar ovo detrás do caixão. O instrumento era simples, mas eficiente. Como se sabe, existem cabaças e cabacinhas: foi aí que me deu na telha de cerrar ao meio uma cabacinha, destas com formato de lâmpada de tungstênio, no sentido do comprimento. Peguei uma vara de aproximadamente um metro e meio e um pouco mais fina que um cabo de vassoura, capaz de alcançar o ninho. Encaixei a vara no pescoço da banda da cabacinha e fiz uma amarração com barbante ensebado para dar aderência e firmeza. Fiz o primeiro teste, foi um sucesso! Pesquei os cinco ovos. Era como uma concha de cabo longo, ou se fosse hoje, um braço mecânico artesanal. A partir de então, quando a galinha pedrês saía do ninho carcarejando alto anunciando ao mundo seu ovo do meio dia, eu entrava em ação com o meu artefato e pescava o avo ainda quentinho, da hora, enquanto a pedrês num salto curto alcançava o parapeito que dava para o terraço interno da casa e sumia livre, leve e solta no quintal para a alegria do galo dono do terreiro. Deste encontro, no dia seguinte era mais um ovo ao meio dia.
Enquanto isso, eu almoçava todo dia, ao meio dia, saboreando um ovo da minha galinha pedrês que botava um ovo todo dia ao meio dia.
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Mas... Era uma vez uma galinha pedrês! Até que um dia, vó Cambeça, tratadeira oficial dos resguardos de minha mãe, quase um a cada ano, gritou da cozinha: ─ menino, traz uma cuia de farinha, a galinha já está cozida, pronta para o pirão. Foi assim o triste e gostoso fim da minha galinha pedrês que virou pirão da farinha do caixão aonde ela tanto procurou proteção. Mal sabia ela que o bicho homem para atender os clamores do estômago não tem compaixão; é mais feroz do o mais feroz dos bichos, como tudo! A partir deste fatídico dia, não mais saboreei, no almoço ao meio dia, o ovo que minha galinha pedrês botado todo dia ao meio dia.
Sempre que como ovo frito no meu almoço ao meio dia, sinto na boca o gosto das coisas do tempo da minha galinha pedrês: quando farinha era gênero de primeira necessidade e se guardava em caixão; tempo em que a gente tinha as coisas, não como agora, que as coisas é que têm agente; tempo em que eu mesmo fazia meus carrinhos de puxar com a boleia feita de lata de flandre do óleo com a marca Pajeú bem a vista e saia desfilando pelas calçadas e nem cobrava merchandising; tempo em que a rua era dos menino, que no final das tardes chuvosas, jogavam bila com os amigos na rua sem medo das motos e dos carros, sem medo dos medos de hoje; tempo em que, montado no meu cavalinho de talo de carnaubeira com olho de caco de prato, estradava pelas ruas de terra, com os pés descalço, feliz da vida...
Ainda guardo na memória, uma musiquinha popular daquele tempo, que pouca gente ainda lembra: “Lua, luar, me dá pão de farinha, pra eu dar minha galinha que está presa na cozinha.”
Mardone França
Um comentário:
Sua história me leva a refletir nas mudanças ocorridas ao longo dos anos, como fazer um adolescente acreditar que se podia viver sem as benesses da tecnologia. Em que tempo ele teve a oportunidade de conhecer uma galinha pedrez e se beneficiar com o seu gostoso fim(gostei dessa parte)Parabéns
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