domingo, 30 de março de 2014

Haikai sertão

Haikai de Gomes Raimundo
Imagem de Leiddy Medeiros

ABC

                                                           A
                                                         B   C

como criar crônica
se estou a fazer poesia,
e no instante em que escrevo...
observo três letras copulando neste dia.
não falo nada...apenas “cronico”, e
para tal mister,
tomo como tema uma trivialidade oportuna,
cotidiana, aguda sem ser profunda;
é um triângulo amoroso entre A, B e C.
como disse, não falo nada...apenas,
vejo o falo de C “falar” sem falhar em A, a pérfida,
olho pela janela cotidiana e, basta B sair, chega C,
A está deitada nua, A ama C na CamA, e rápido fazem    AC,
ao anoitecer, B retorna e A sempre disposta, fazem         AB,
C volta à casa de B e flagra AB, fazendo                      BA,
C ciumento luta com B, e a bela A tenta acalmar              BC,
                                                               Inesperadamente A arma-se,
atira em B, que
     matara C, então
suicida-se A
e a crônica para A, B e C
A-C-A-B-A

Danilo Bomfim 
Varjota-CE

Há dias
& Dias
Poeta
No tempo
Que passa
Na canção
Que fica
No exílio
Que é meu
Real ou imaginário?

Inocêncio Melo
(29/03/14)

sábado, 29 de março de 2014

Pátria

Não tenho o pendão da esperança
E o peito, já não é tão juvenil
Não me deito em berço esplêndido
Nem sou filho da mãe gentil
E esse tal de augusto da paz
Nem me lembro quem é mais
Pois viver as margens plácidas
É para uns poucos magnatas
Que usurpam dos demais


Sou filho sim, de um povo heróico
De brado não mais retumbante
Pois, por mais alto que bradamos
Parecemos mais distantes
Do lábaro que ostentas estrelado
Lembram das glórias? Estão realmente no passado
E o que hoje conseguimos conquistar com braço forte
Mais da metade é pra pagar o passaporte
Para com sorte, permanecer no mesmo estado.

A verdura sem par das tuas matas
Sob as serras de aço padece
O teu céu de puríssimo azul
É o único que permanece
E o penhor da igualdade
Se empenhou na vaidade
De grupos que galgam liderança
Conquistando da massa, a confiança
Com promessas falsas de liberdade

Oh Pátria amada idolatrada! Deus te salve
Deus te guie pelo caminho da sorte
Pois teus filhos já não suportam viver
Desafiando o peito à própria morte
Cuida senhor, desse povo sofrido
Que de prova em prova está desprovido
Pois a imagem que hoje resplandece
É de um povo apavorado que padece
Sob um coma profundo, induzido.

Zequinha

sexta-feira, 28 de março de 2014

Casa caiada


Em meio ao capim e o mato, eis que surge uma casa caiada.
Branquinha e pequenina, como flor de algodão em terra cultivada.
Logo olho e imagino a vida de quem ali faz morada.
As marcas no telhado representam a eterna parceria com o tempo.
A doçura é carregada em portas e janelas miúdas, acolhedoras de todo tipo de luz.
O chão bruto deixa marcas nos pés, o pó formata desenhos na pele e não deixa esquecer, dele viemos e para ele retornaremos.
Na paisagem serena, a vida vai se formando sem pressa.
A silhueta das plantas tem encanto natural, sempre em movimento, alegra diariamente o singelo quintal.
Cada parede erguida preenche de calmaria o traçado de suor, revelando o suave enlace entre a beleza e a simplicidade.
Os cômodos pequenos carregam apenas o melhor de si.
O vento, que uiva pelas frestas, une-se harmoniosamente ao canto dos pássaros que passeiam por lá.
O sol e a lua se revezam na companhia da felicidade.
Quem dera fosse de conhecimento total as desnecessidades de uma casa caiada, tangenciando, quietinha, aquela beira de estrada.

Míria Glenda
Aracati/CE

quinta-feira, 27 de março de 2014

Talvez

Em algum lugar do globo um garotinho de onze anos ouve Nirvana trancado num quarto sombrio. Sua mãe vê-lhe um futuro macabro: imagina-o dali a dois anos com uma ampola na mão à beira de uma overdose lisérgica.

Alguns bairros após, indo em sentido sul, um casal torce o nariz perante a cor do médico que atende ao filho de ambos. Creditam seu diploma à determinada política de cotas universitárias implantada por determinada Estado jurídico de algum país. No mesmo hospital, um quarto e um corredor depois, um triste palhaço tenta, em vão, alegrar uma garotinha soropositiva.

Partindo de onde estamos, treze países a noroeste, uma linda menina loira, de olhos cuja cor se define pela intensidade da luz do sol, dá pipoca aos gorilas no zoológico. Lá fora, um ruivo menino pede esmola para comprar o almoço de ontem.

Longe dali, talvez bem perto de onde esteja eu, um marido espanca sua esposa na frente dos filhos por ela ter gasto o dinheiro de um incentivo do governo comprando material escolar para as crianças. Ele queria comprar cachaça!

Nas proximidades de um aeroporto famoso em todo o mundo, uma menina de doze anos (com corpo ainda de oito) felicita-se por ter tido sua menarca – fora a primeira de sua turma. Na mesma casa, no próximo quarto a leste, sua irmã está desesperada porque a sua ainda não veio... está nua no quarto, em pé, com as mãos cobrindo o rosto, deixando à mostra todo o seu corpo. Pela janelinha do banheiro, também já quase nu, seu padrasto observa tudo.

Alguns graus de latitude norte a menos, um adolescente entra na farmácia mais próxima para comprar cigarros. A moça o atende muito bem e eles trocam telefones. Em sentido oeste, na próxima universidade pública, um grupo de estudantes fuma maconha e questiona-se sobre seu presidente (seria ele um fascista de esquerda ou um fascista de direita?). Os mais exaltados tramam planos para derrubá-lo do poder.

Perto do centro geodésico, onde o sol é mais forte, quatro homens jogam baralho há quatro dias sem parar. Todos os quatro já perderam todo o dinheiro que tinham nas apostas do jogo e mesmo assim continuam a jogar. Mas onde está o dinheiro que trouxeram? “Algum negro deve ter roubado”, pensam rapidamente para não perderem a concentração no jogo. E continuam a jogar e a perder dinheiro, todos os quatro.

No exército de um país em guerra dois soldados homossexuais transam dentro da sala do general. A mulher de um deles chega à sala e acompanha tudo. Lá fora, sob a chuva, um impaciente sargento berra com seus soldados na trincheira que armaram para o inimigo. Seus soldados, contudo, não parecem lhe conferir muita atenção, já que o jogo de futebol na televisão está bem mais interessante.

A alguns muitos países a sudoeste, um casal, (ela de doze, ele de quatorze) perde, mutuamente, sua virgindade. Ela, ansiosa, pensa em como pedirá à mãe para comprar-lhe anticoncepcionais; Ele, orgulhoso, pensa no orgulho que o pai lhe terá. No próximo continente, em direção contrária ao nascimento do sol, um garoto de dez anos masturba-se ao espiar, escondido, sua mãe a trocar de roupas. Materializa assim, ainda de que de forma canhestra, seu Complexo de Édipo.

No próximo país que estiver nevando neste momento, uma garota lê Dostoievski e masturba-se ao pensar no drama que é o humano. Em qualquer lugar, no exato momento em que atinge o orgasmo, uma criança morre de fome.

Dali a muitas e longas milhas, um casal de 65 anos transa e fuma ouvindo Mozart e Bach. Os dois gozam e fumam muito. Não veem graça em posições convencionais e continuam a inventar as suas próprias. Continuam a fumar e a gozar bastante.

Mais uma criança morre de fome agora enquanto, neste exato momento em que tu me lês, em uma grande empresa multinacional, um dos diretores trai sua esposa com o faxineiro.

Num convento católico de um país de maioria budista, uma freira espia os futuros padres a banharem-se nus no rio. Perto dali (e talvez muito mais perto daqui) um padre e um psicólogo trocam confidências... alheias!

Alguns muitos graus ao sul, dois irmãos brigam pela herança pobre que seu falecido pai lhes deixara. Repetem, agora, quase adultos, as brigas que mantinham quando crianças pelos times de botão ou pelo controle da televisão.

Quase adultos também, um casal de namorados brinca de marido e mulher na frente do gato de um deles. O felino observa tudo atentamente, talvez presenciando o maior ato humano: a consumação do amor! Ou talvez simplesmente não entendendo nada...

Ao meu redor, o mundo transborda de acontecer. Incha-se de tanta vida: lágrimas, gozos, suores, sol, mar, dores, angústias... vida. Talvez tudo isso realmente esteja acontecendo enquanto a ponta de minha caneta desliza suave e sem pausa pela superfície branca do papel.

Neto Muniz
08.04.2011

quarta-feira, 26 de março de 2014

SobreVivência


“Uma semana de fome,/ Não me faz precipitar,/ Mato cinco ou seis calangos/ Boto no
Sol a secar,/ Quatro ou cinco lagartixas,/ Dão muito bem um jantar.”
Antonio Silvino, o rei dos cangaceiros, Leandro Gomes de Barros


A barra do Dia consome as derradeiras defesas da Noite
O estômago vazio acorda decepcionado
contentando- se somente com a grossa saliva deglutida
A sopa de ossos esperançosamente colhidos, relatada pela mãe
havia de ser preparada com intentos nutricionais ocultos
uns saboreavam-na
outros, entretanto, se aproveitavam da esperteza
saíam catando nos matos ressequidos
o que lhes desse de comer e beber
para tudo se tinha um jeito
até para as cousas do Amor
que não se precisava inventar tanto sofrimento
nem criar tanto pensamento mergulhado na sequidão
da angústia e do medo
As tripas já sabiam o que tinham de fazer
locomovendo-se iam atrás da

Sobrevivência

Benedito Teles
Escrito em 16 de agosto de 2007.

terça-feira, 25 de março de 2014

Homo cactus


Sou um cardeiro de asa, 
Uma planta desfolhada, 
Com raiz atada ao chão. 
Tenho caule feito brasa, 
De rama encarquilhada 
E espinhos de proteção. 
O meu leito é cova-rasa; 
Sorvo seiva na alvorada; 
Lanço flores na estação. 
Fiz na pedra firme casa; 
Cedo fruto à passarada; 
Canto a vida sem refrão. 
Na seca que tudo arrasa, 
Sou criatura arretada: 
Homem-cacto do sertão.

Eliton Meneses

segunda-feira, 24 de março de 2014

Entre cães e urubus

No lixo público,
Há uma leva de homens,
Banhados no pó da esperança
De desentropiar os restos mordidos
Do pão que azedou
Nas mesas da indiferença.
O cão e o urubu,
Em desvantagens com os homens,
Estraçalham consciências,
Contentam-se com as sobras das sobras
Do que apodreceu
Dentro da solidariedade humana.
Atrás da maçaneta da visão,
Aberta para o desespero,
A varejeira põe os ovos
Na degustação dos pedaços
Do sustento daquele dia.

Jonas Pessoa

O banquinho do jardim

Minha vida passou tão depressa pelo banquinho do jardim,
Tal qual um trem, qual um navio de uma frota de sonhares...
Revoam as visões à distância dos avós desterrados de mim...
Ficou o banquinho do jardim, correio dos perdidos olhares...

Giravam carrinhos de lata ao redor do banquinho do jardim,
Piões coloridos rodopiavam pelas luminosas férias escolares...
Ecoam dentro de mim gemidos de violino, realejo, e flautim...
Ficou o banquinho do jardim, correio dos perdidos olhares...

Eram folias de estátua no banquinho congelado do jardim,
Folias do vento que levou o barquinho de papel pelos ares...
Feitiço de gênio ruim que rouba minha Infância de alfenim...
Ficou o banquinho do jardim, correio dos perdidos olhares...

Diogo Fontenelle

~*~

vma phlLor sem o solL o calLor

sem aAa agva o phrescor.sem 
aAa terra o esplLendor
sem aAabrisa.sem o ar o pendor

sem o lLvar o amor.vma phlLor 
sem o beijo dDo oscvlLa phlLor
sopro dDe vida.sopro presente

sopro dDe morte.sopro phvtvro
sopro dDegente.phenece se nao
ha alLgvem especialL qve aAa 

aprecie.aAa cvmprimente

Poema y&y Imagem: PhrahelLio 
© Phrancisco HelLio SilLva AlLves

domingo, 23 de março de 2014

Gota

Pinga uma gota,
outra gota
e lá vem outra...
...e depois de quarenta,
cento e dez,
duzentas e quarenta e três gotas:
um litro...
...vários litros...
...uma poça...
...um rio...
...um Nilo...
...um mar de gotas únicas,
como eu,
você ou ele,
todos nós ou eles todos,
e assim, um MUNDO de gotas
formando um MAR de gente,
sempre sendo pra você
de todo o mundo,
a coisa mais importante,
mesmo com todo mar,
sempre uma e única gota, você.

Mailson Furtado
Varjota - CE

quinta-feira, 20 de março de 2014

O Bicho

Tem um Bicho aqui, dentro de mim
com demasiada fome.
Se eu correr, o Bicho me pega
Se eu ficar, o Bicho me come.

Tem um Bicho aqui, dentro de mim,
Árido como o inferno.
Há ânsias de fugir, mas não sei como
Há ânsias de ficar, mas eu nego.

Tem um Bicho aqui, dentro de mim,
Com a sede de um deserto.
Se o rejeito ele ressurge
Se aceito, pouco entrego.

Tem um Bicho aqui, dentro de mim,
Faminto, grosseiro e voraz.
Meu D’us, o que agora faço?
O Bicho não se satisfaz.

Tem um Bicho aqui, dentro de mim,
E eu por muito tempo tive medo.
Já o recriminei
Já o agredi
Já lhe joguei pedras
Já as recolhi
Já o furei
Já me escondi
Ameacei de morte
Ofendi.
Eu já orei com fé
Já lhe demiti.

Subornei
Implorei saída
Ofereci minha herança
Minha alma
Meu corpo nu
Eu fiz de tudo
e tudo parecia pouco.

Até que um dia
convulsionei
Subverti
Rolei no chão
Estrebuchei
Gemi
gritei
chorei:

O admiti.

Sim, tem um Bicho aqui, dentro de mim!!!
E tem gente que nunca entendeu.
Eu levei anos até concluir
Que esse Bicho, simplesmente, era Eu.

Agora o hospedo
Com o mínimo de pudor
Vira e mexe afirmo: "não queria assim".
Mas o que posso fazer, meu D’us,

Se há um Bicho - um Bicho dentro de mim?


Mário Silveira
Após os escombros de uma aula de Psicanálise.

segunda-feira, 17 de março de 2014

À parnasiana

Cuida de todas as rimas que tu tens
Para que nenhuma outra de ti as afane,
Essas outras poesias são tão ávidas pelos teus bens
Porque o valor delas ainda é inane.

Cinge teus versos com o amor que te tenho
Para pugnar a famosa inveja,
Expulsa-a na mesma velocidade que a ti venho
E na mesma intensidade que minha alma te deseja.

És, de todas as poesias, a mais preciosa,
És perfeita na escrita que é doce e na forma plana
E por te destacares assim grandiosa
É que prefiro-te e escolho-te, Poesia Parnasiana.

Wesley Ribeiro Dias

O doido da chuva*

-Morreu?

-É, morreu!

-Mas como pode? Ontem mesmo ele estava no meio da rua gritando com todo mundo.

-E precisa de mais? Pra morrer bastar estar vivo!

E foi assim, o menino era famoso por suas traquinagens. Não era de se estranhar: menino bom é menino traquino, se for alguma coisa está muito errada. Porem, as traquinagens deste menino pareciam acompanhar solstícios e equinócios, pois, em época de chuva, o menino parecia possuído pelo espírito do caos. 

À chegada das primeiras nuvens carregadas, começavam as primeiras confusões, coisas pequenas. Quebrava galhos de pé de siriguela, roubava goiaba, e outras coisas miúdas. Quando a chuvarada já inundava as plantações e faziam rio nas rodagens, os delitos se tornavam mais graves. Matava galinhas com baladeira, torturava gatos e cachorros e esculhambava deus e o mundo em qualquer situação que houvesse. Seus pudores pareciam se dissolver com a água da chuva. O motivo de tanta danação ninguém sabia direito.

-Não, compadre, aquilo foi a febre do sarampo que derreteu-lhe o juízo.

-Foi não, comadre, é que o menino não foi nem batizado.

E as especulações não cessavam, cada um que o conhecia de pequeno tinha uma pronta, diziam até que era uma praga jogada pelo avô materno antes mesmo do menino nascer. Certo é que o menino era, de certa maneira, temido por todos os meninos de mesma idade. 

Em épocas de sol e tempo seco, era tudo uma maravilha. O menino estudava, ajudava os pais a vender verdura na feira, ia a missa, tudo que se espera de um cristão criado nos cabrestos do catolicismo. Ruim mesmo era só quando começavam as chuvas. Era um “deus nos acuda”, o caos da vizinhança, e as pessoas tentavam ao máximo relevar as danações do menino por consideração aos seus pais e a sua idade.

Nos primeiros sinais de chuva os pais já ficavam com coração na mão, faziam promessa, mandavam o padre benzer, chamavam a rezadeira, tudo em vão. Era só começar a chover que o menino saia num desembesto maior do mundo. 

-Deixa de ser fofoqueira velha atentada do satanás! Dizia ele as senhoras em beira de calçada.

-Vai atentar o cão com reza vendedora de cheiro-verde podre! Bradava ele à própria mãe no meio da rua.

Oh meu deus, esse menino ainda vai fazer uma “arte”, vai acabar dando cabo de um ou dá fim na própria raça, será possível meu deus! Pensava a mãe nos dias de temporal.

As temerosas profecias da mãe acabaram se realizando. No fim de um mês de março, ele saiu à procura de aventura. Era tarde chuvosa e uma reca de meninos passou correndo em frente de sua casa.

-Onde é a bagunça? Perguntou ele já abrindo a porta pra ir junto.

-Lá na baixa da velha Rosa, a barragem do Chico Testa arrombou e o rio ta parecendo um açude. 

-Estão pegando piaba até com a mão! Emendou uma das crianças. Eles sabiam que pra ter danação grande era só chamá-lo.

E foram! Dispararam na carreira até chegar ao rio. Havia muita água mesmo, as mangueiras que ficavam a uns dez metros da margem estavam cobertas até o tronco. A meninada ficou com medo, mas o menino foi logo tirando a roupa e tibungou n’água. A meninada começou a se jogar no rio, primeiro um, depois dois, aos poucos só se ouviam gargalhadas, barulho de dente se jogando no rio. Um mais afoito subiu na mangueira e deu a primeira pirueta. O segundo foi pro galho um pouco mais alto e também se jogou! 

E menino brincando junto, como se sabe, não brinca somente, compete. Tudo é jogo, tudo é desafio! Não demorou muito até o primeiro sabido jogar o desafio para o doido da chuva. 

-Sobe até o olho da mangueira e pula que eu digo que tu é corajoso!

-Subo sim!

E começo a subir. Deu uma escorregada que arrancou um urro grave, quase um sussurro, da plateia. Alguns mais medrosos gritaram pra ele para, pular de onde estava já era bom. Mas o menino continuou subindo.

-É aqui? Perguntou. 

-Não, vai mais alto, mais alto! Bradou a maioria da meninada em couro.

Enquanto ele subia, a “reca” caia na gargalhada imaginando a queda. Criança é um bicho inocente, tão inocente que chega a ser malvada, perigosamente malvada. 

Com dificuldade o menino ia subindo, quebrou um galho no percurso, aumentando a aflição e satisfação dos espectadores. Alguns chegaram a duvidar de sua façanha e então, num susto só, o menino pulou gritado e mergulhou de pé dentro d’água. Caiu meio torto fazendo um “CHIPULÉP” na água. 

Uns fizeram uma cara de dor, como se sentissem a água batendo nas próprias costas. Outros fizeram cara de espanto, mas todos riram diabolicamente.

Cinco segundos passaram até que o primeiro menino parasse de rir, outros dez até que todos parassem de rir, e mais 30 para que os meninos ficassem pálidos sem saber o que fazer. O mais velho pulou dentro d’água, tateou o fundo de lama e nada encontrou. Outros dois fizeram o mesmo em outras partes do rio, sem sucesso. Uns saíram correndo, aos prantos. Outros sentaram no chão e ficaram olhando para a água, amarronzada de tanta baldeação. Pouco depois, só o som da corredeira se ouvia.

A mãe do menino correu para o rio quando viu a procissão de meninos chorosos e desconfiados passando em frente sua casa. Foi uma desolação.

O cadáver só foi encontrado dois dias depois, enroscado numa cerca de arame farpado que estava escondia na inundação. Só foi possível encontra-lo com a água do rio já baixa. 

E foi assim que sucedeu, bem como sucede em todo fim de mundo como aquele lugar, o menino, tido como “doido da chuva” ficou nas histórias e memória dos que os conheceram, virou lenda pra assustar meninos danados. Parece-me que os loucos só são louvados ou temidos verdadeiramente na época de sua loucura.

*Inspirado numa conversa de fila de posto de saúde em dia de atendimento a hipertensos.

Yan Valderlon
29.07.2009

quarta-feira, 12 de março de 2014

Campanha “Tenha uma estante de livros no seu quarto”

De uma hora para outra, percebi a estante branca que tenho no meu quarto. Cheia de livros, papéis, apostilas, pastas. Percebi que minha vida acadêmica foi influenciada justamente por esta estante. 

Era uma estante velha e enferrujada. Meu pai havia comprado a para colocar peças de computador. As peças um dia foram embora e a pobre estante ficou sem serventia. Minha genial mãe teve a ideia que mudaria minha vida daí em diante: resolveu que a pintaria de branco e colocaria no meu quarto. Lembro fui com ela comprar a tinta e depois levamos, nós duas, aos olhares dos vizinhos a coitada da estante para o homenzinho que a pintaria. Umas três horas depois, o homem enviou seu filho até minha casa para avisar que a estante já havia sido pintada. Fui correndo vê e me apaixonei. Ela estava linda. Alva, ereta e parecia até que sorria para mim. Mais uma vez a carregamos diante dos olhares dos vizinhos. Colocamos no meu quarto e comecei a posicionar meus livros. Em uma prateleira ficariam os livros da escola, em outra os livros de historinha. Lembro que cheguei a pegar sutilmente alguns livros da estante do meu pai, só para a minha ficar mais cheia. 

Um dos dias mais felizes foi quando uma tia minha, que na época era diretora de um colégio, enviou para mim uma caixa de livros. Eram muito livros, de todos os tipos. Contos, crônicas, poesias. Foi com estes livros que conheci Pedro Bandeira, Ruth Rocha, Ana Maria Machado. Foram os dias mais deleitosos da minha vida. Só vivia do lado da caixa. Todos os dias eu esparramava os livros no chão, escolhia um para ler e deitava, no chão mesmo, para ler. Meu pai antes de ir para o trabalho sempre tecia algum elogio, e eu ficava feliz por matar dois coelhos de uma cajadada só, fazia algo que me dava prazer que era a leitura e ainda dava orgulho ao meu pai. Minha mãe às vezes vinha perguntar se não queria comer algo, se não estava exagerando. Eu não queria saber de mais nada. Só ler, ler, ler. A menina que limpava a minha casa já nem mais varria a sala onde eu ficava deitada com os livros, não havia nem espaço para sentar no sofá, por que os livros que já havia lido eu os colocava lá. E agora que eu tinha uma estante, poderia colocar todos estes livros lá e deitar na minha cama e ficar admirando-os como se olhasse para o mais belo quadro de um pintor muito famoso.  

A estante sempre acompanhou minha evolução. Um dia ele comportou os meus livros de fundamental, até que tive que tirá-los e colocar os do ensino médio e toda aquela papelada do pré-vestibular. Quando passei no vestibular, resolvi doar alguns livros e deixar outros. A estante ficou um pouco vazia, mas começaram a surgir as apostilas xerocadas da faculdade, as pastas de documentos, as pastas de certificados, as pastas com cartinha dos admiradores, as pastas com confissões. 

Recentemente resolvi desafogar a estante. Tirei alguns livros que vieram na super caixa e resolvi doá-los para a meninada do bairro. Coloquei um monte de livro dentro de uma sacola e comecei a bater de porta em porta. Como não sou uma pessoa que expressa bem os sentimentos verbalmente, eu simplesmente jogava os livros no braço das crianças e dizia “pega pra tu” e saia. Talvez eles tenham sentido a mesma alegria que eu senti naquele dia que agora é tão distante. Talvez eu com esse ato tenha mudado a vida dessas crianças. Talvez...

E hoje penso. Todos deveriam ter uma estante de livros em seu quarto. Deveria ser uma lei da Constituição. Não há nada mais eficiente contra a violência, contra as drogas, contra a evasão escolar. É um remédio eficaz para a saúde a curto e longo prazo. Boa parte dos meus conhecimentos deve-se justamente a uma estante que comportou vários saberes e que hoje está um pouco torta de tanto segurar o mundo por mim. 

Mariana Santiago

Insônia

No céu o astro de fogo se despede
E como quem reina, espalha sua beleza
Para que todos atentos o observe
Num espetáculo digno de nobreza.

Aos poucos surgem as estrelas
A lua parece nem estar no céu
Se movimenta com toda sutileza
Os cavalheiros até tiram o chapéu.

O corpo se prepara para dormir
Sinal da cruz antes de deitar na cama
O sono resolve sumir
E logo começa o drama.

A posição parece não ser confortável
O lençol não aquece do frio
Um malabarismo incansável
E a alma perde o brio.

Tudo tira o sossego
Um feixe de luz na janela
Distancia o aconchego
E a noite se rebela.

Um barulho lá fora surge
Suficiente para despertar atenção
Parece um lobo que urge
Encantando a escuridão.

Os olhos começam a arder
O coração tende a acelerar
A virgília insiste em permanecer
Mas a mente só quer descansar.

Vale contar carneirinhos
Um, dois, vinte, cem
Já é hora de ouvir os passarinhos
E o almejado sono não vem.

Recorre-se a outros mecanismos
De origem farmacológica
São os soberanos ansiolíticos
A questão talvez seja psicológica.

O negativo de se manter acordada
São os pensamentos desconexos
Que ao longo da madrugada
Deixa o ser perplexo.

A noite até pode ser envolvente
Mas ela só me faz chorar
Tenho a essência de um ser carente
E o crepúsculo me incita a lamentar.

No sono não passo do primeiro estágio
A sonolência não vira torpor
O dia todo tenho um presságio
Que a noite vai ser um horror.

Essa tal dissonia
É mesmo algo injusto
Queria eu uma alquimia
Para dormir a qualquer custo.

Não dominar a volição
Ficar por horas inconsciente
Talvez fosse a solução
Do meu desespero aparente.

A insônia ainda irá me acompanhar
Vou tentar torná-la produtiva
Agora é hora de ir deitar
E praticar toda essa narrativa.

Autora: Ádyla Lucas

domingo, 9 de março de 2014

Filha de Eva

Alice
alicia-me
aqui
ali
acolá
aonde
quiseres
Alice
alicia-me
faz de mim
tua vitima
Alice
menina
mulher
cobra
criada
degredada
filha
de
Eva.

Inocêncio Melo
Sobral - CE
06/03/14

Homenagem à mulher

Crescemos com o sofrimento, com a dor, com o desprazer de ver determinada situação minando nossa mente como um trator devorador. Mas num dado momento depois da queda, vem a força, vem a consciência, num feroz templo tempo, daí ao meio a palavras ditas, lidas, vidas, vencidas vem nossa auto estima, não pense que tudo é cor de rosas, um céu azul de anil. Vivemos assim a cada dia e em muitos canais, agradeço ao Universo e ao criador ser uma mulher forte e sei que você é também, então minha amiga, seja assim mesmo como você refere no teor poético de seu texto. Chore e depois enxuga suas águas de sentimentos feroz, amanhã é um novo dia, reflita, pense, silencie, abraço amiga!

Eliene Magalhães
Caucaia-CE

~*~


aAa impermanenciia espacço temporalL 
dDo corpo ciiclLiico permaneceos dDias

o pvlLsacelLerado permaneceas noittes

na cadeialLimmentar atte qvese prove o
conttrario o bicho homem heo biccho rei

Poema y&y Imagem: PhrahelLio 
© Phrancisco HelLio SilLva AlLves

A mulher da poesia

Meu vinho meu aguardente
Minha rima meu apelo
Afago do meu cabelo
Meu cacho de mata-fome
Um verso para teu nome
Em nome da poesia
Te adoro todo dia
Te trago dentro do peito
Todo dia tenho feito
Molduras no teu retrato
Assim no anonimato
Te vejo na madrugada
Andando pela calçada
E você nem adivinha
E como se fosses minha
Te faço minha rainha
Mulher de conto de fada!!!

Orestes Albuquerque
Cruz/CE
Mar. 2014

Ponta da faca

Quando dei por mim
As lágrimas caíam no meu rosto
Escorregavam, chegavam ao pescoço

Quando dei por mim
As lágrimas caíam sobre a taça
Chegava aos poucos na prataria rebuscada

As lágrimas caíam... Caíam!
Na mesa, nas cadeiras
Eu desenhei o teu rosto com a ponta da faca
Desenhei o teu rosto numa gota de lágrima

Sobre a mesa desenhei o teu rosto
Com a ponta da faca desenhei o teu rosto
Numa gota de lágrima!

Andreza Alves
Massapê/CE

Compaixão

Os raios solares cintilavam toda a extensão territorial, onde se encontrava José. Um balde, preso a uma corda, emergia de um profundo poço já quase seco pela escassez de chuva. O conteúdo contido no recipiente era barrento, era sujo, era impuro, era água. Nosso amigo José fizera uma longa caminhada de sua casa ao presente local. A maioria dos rios encontrava-se vazios; este poço, em pouco tempo, não seria mais exceção.  

José, neste instante, regressa à sua casa. Vai devagar, com passadas lentas, quase rasteja. Segura, em cada uma das mãos, um balde. O líquido, transparente por origem, encontra-se com cor. O trajeto é longo, árduo; o agricultor, dizemos assim sua profissão por força do hábito, pois em períodos assim, esse trabalho tão digno torna-se impraticável, encaminha-se ao seu modesto lar, perdido em pensamentos.     

José ultrapassa os trinta anos, possui altura regular, uma fisionomia fatigada, enrugada, beirando a tristeza. Casado há alguns anos, possui um único filho batizado de Francisco, pelo qual guarda um amor incondicional. Desde o nascimento da criança, há pouco mais de sete anos, José vira sua existência ganhar um novo horizonte, um novo sentido. Tinha pena de seu amado filho, é verdade, de não poder proporcionar-lhe uma vida diferente daquela, que suas míseras condições poderiam sustentar, todavia dia após dia, debaixo do sol ardente lutava, constantemente, não para dar uma vida pomposa à sua família, já que essa esperança nunca teve, mas para ser o melhor marido e pai que conseguisse.

Depois de uma penosa caminhada, nosso conhecido chega, enfim, à sua morada. A casa é simples, de taipa, teto baixo, com a porta principal bem gasta. José entra quase sem fazer barulho. À janela, está Fátima, sua esposa, com o queixo apoiado na mão, tendo o cotovelo sobre a mesma janela. Fátima permanece estática, parece nem se dar conta da presença de José. Seus olhos, neste momento, brilham, enquanto observa o quintal. Sua boca esboça um sorriso discreto, que se concretiza logo após. Com a atenção, até então, fixa no quintal, volta-se ao marido, quando ouve sua voz grave, porém amigável. 

- Voltei, mulher!

- Que bom, José, ainda tinha água naquele poço? – indagou Fátima como se lembrasse de perguntar algo importante.

- Tinha, graças a Deus, mas não tarda a secar.

- Ah, estou tão preocupada, José, parece que esse ano será como o outro, com pouca chuva – disse taciturna. 

- Deus sabe o que faz, mulher! – respondeu José de prontidão.

Não se surpreenda o leitor com tamanha fé, já que as pessoas, principalmente as mais necessitadas, sentem-se confortadas ao saber ou pensar que há alguém, em um plano superior, prontos a socorrer-lhes mesmo nos momentos chamados conturbados. 

O agricultor pôs a água de ambos os baldes em um compartimento maior. Dirigindo-se, logo após, à janela, o rosto de José tomara um caráter afável, seu coração contraiu-se não de dor, mas de orgulho e alegria. Contemplava, esquecido do mundo, Francisco, de cócoras, nu da cintura para cima, sem chinelos, notavelmente franzino, cabelo crespo, a brincar. O pai da família deu a volta pela porta e, sem se deixar notar, abraçou, de surpresa, o seu único filho. 

- Esse menino passa o dia inteiro brincando – falou José sorrindo, enquanto abraçava o filho.

- Quando o senhor vai me ajudar a fazer meu carrinho, pai? – perguntou o garoto já exaltado pela presença do pai.

- qualquer dia, meu filho. Hoje, papai tem de ir à cidade.

- O que o senhor vai fazer lá?

- Tentar arrumar algum serviço para poder comprar o seu material escolar – disse José, beijando a cabeça do filho. 

Francisco viu seu pai tomar o rumo da casa e ouviu sua mãe avisando-o para almoçar antes da partida. O garoto frequentará o segundo ano do colegial, e neste, assim como no ano anterior, era encontrada, por parte dos pais, dificuldade para comprar seus materiais de estudo. Apesar de bastante jovem, a criança estava ciente da situação alarmante que se encontravam. Sabia, antes de tudo, da crise financeira que sempre os acompanhou, preocupava-se também com a ausência de tempos chuvosos, pois era este o principal fator que agravava a situação econômica daquela família necessitada por natureza. Nosso jovem habituara-se a essa vida contida de bens materiais, à falta de recursos até mesmo para as necessidades básicas como roupa e comida, no entanto, jamais questionara o esforço dos pais em oferecer-lhe, dentro de suas sórdidas condições, o melhor que pudessem. Possuía o amor de seus pais, sentia-o nas carícias, nos gestos, nas palavras. Sonhava um dia ter profissão, formar-se e, desta forma, amparar os seus protetores. Tinha conhecimento da dificuldade que encontraria nessa jornada rumo ao futuro mais digno, contudo estava bastante agitado com o retorno das aulas, estudará na mesma escola do ano pretérito, reencontraria seus amigos que, sejamos francos, não eram poucos. Mostrara-se, no colégio, um garoto muito sociável, amigável e dedicado aos estudos; talvez, por isso, foi alvo de constantes elogios por parte dos professores. 

- Tira a roupa do varal e traz pra cá, Francisco – gritou Fátima de dentro da casa.

- Estou indo – falou Francisco em resposta.

O garoto foi ao varal e, uma por uma, recolheu todas as peças, penetrou a casa com o amontoamento de roupas entre as mãos, segurava-o com dificuldade, Fátima veio logo à porta e o ajudou a pô-las sobre a cadeira. Francisco tinha os olhos em cima de uma vestimenta em especial, olhava-a fixamente como se observasse um artefato místico, todavia não pense o leitor que atentamos, aqui, ao sobrenatural, sendo que nada mais era do que a blusa do uniforme escolar de Francisco. De tamanho P, colarinho azul, tendo o emblema da instituição ao peito esquerdo; a blusa branca por natureza, dizemos por natureza, porque manchas amareladas estavam já perceptíveis, dava sinais de muito uso, mas como seu pai afirmara-lhe ser inconcebível a compra de uma nova, Francisco a usaria por pelo menos mais um ano. Com o pouco capital de que a família dispunha, tornava-se penosa qualquer tentativa de obter algo além de comida. Aparato por parte do governo não havia, nem mesmo uma política ou projeto educacional que fornecesse os utensílios básicos necessários para exercer-se a função de aluno, pois os homens que controlam a economia e regem as leis têm mais o que fazer.  

José, à porta da prefeitura da cidade na qual é nativo, que fica a poucos quilômetros de sua morada, está, em seu íntimo, apreensivo; pois trabalho não conseguira. Recorre, em última esperança, ao prefeito. Ao entrar, depara-se com a secretária, que logo pergunta:

- Boa tarde, senhor, posso ajudá-lo?

- boa trade, senhora, é porque eu queria falar com o prefeito – disse José hesitante.

- Você poderia adiantar o assunto? – falou a secretária com um leve sorriso.

- Vai começar as aulas do meu filho, e eu não tenho como comprar o material dele... – José foi interrompido pela secretária que já havia entendido a situação. 

- Pode deixar, senhor, qual o seu nome mesmo?

- José.

- Seu José, espere aqui, vou ver se o prefeito está presente no gabinete.

José sentou-se, com seu ar humilde, chapéu de palha à mão, usava uma blusa azul, de mangas curtas, rente ao cotovelo; a calça cinza, de pano leve, um pouco larga para seu corpo magro, dava algo de desajustado na aparência de José. Não usava sapatos, não os tinha, os pés firmavam-se sobre chinelos velhos, pois era o que dava para comprar. O único sapato que havia em sua casa pertencia a Francisco, José os adquirira depois de muito esforço, comprou-os para que seu filho pudesse comparecer, o mais descente possível, ao aniversário de seu colega do colégio, que o convidou com muito carinho. Na ocasião, nem mesmo presente Francisco levou. A dívida pecuniária deixada pela obtenção dos sapatos era exorbitante por si só. O leitor deve saber que a quantia referida não ultrapassa quarenta reais, entretanto levando em conta as condições precárias dessa família, a mesma dívida parecia agigantar-se.  
Um homem trajado formalmente estava sentado a uma mesa. O imóvel tinha, sobre si, muitos papéis. Aquele senhor calvo, um pouco acima do peso, parecia extremamente enfastiado com tudo aquilo. Segurava uma caneta, que largou após ouvir um ruído vindo da maçaneta da porta. 

- Senhor prefeito, tem um homem chamado José querendo falar com você, parece que ele deseja uma pequena quantia em dinheiro para comprar o material escolar do filho – disse a secretária já fechando a porta atrás de si. 

- Este José é aquele que mora um pouco afastado da cidade? – perguntou exaltado o prefeito.

- Creio que sim, é um sujeito magro, moreno – resmungou a secretária.

- Eu o conheço bem – disse o prefeito enraivecido – na eleição anterior, ele votou no candidato da oposição, diga a ele que eu estou ausente, ora essa, é cada um que me aparece – terminou o prefeito indignado. 

A secretária tomou o procedimento imposto pelo prefeito, ou seja, dizer a José que o mesmo estava ausente. Nosso agricultor esboçou poucas palavras, deu boa tarde e se retirou. Ia andando a passos vagarosos pelas ruas, seus olhos lacrimejavam, com a alma amargurada vagava para casa. Tentaria, no dia seguinte, conseguir alguma remuneração em troca de serviço. Sentiu, de súbito, uma gota d’água tocar-lhe o braço, levantou os olhos, o céu estava escuro, tenebroso, logo choveria. Talvez fosse esse o prenúncio de dias melhores, mas somente o tempo poderá concretizar tal afirmação. 

Kelvis Albuquerque
Coreaú/CE

Gota d'água

Sou uma gota d'água
Hora na calçada
hora no pote
hora no mar

Sou uma gota de chuva
Esperando a hora de molhar

Sou uma gota nas nuvens
Vento leva, vento trás.

Sou uma gota de
Água doce, água salgada.

Sou apenas uma gota,
Gota d'água.

Messias Pinheiro
Iguatu/CE
01 fev. 2014

De repente

Vou tentar ao meu modo,
Sem rimas e sem métricas,
Livres, como eu,
Alguns versos que façam sentido
Para mim e para você.
Não me importo com o mundo,
Nem com as impossibilidades
Que você mesmo impõe.
Sem você eu sou livre
Ainda que presa às grades dos teus nãos.
Com você eu seria livre também
Eu seria livre de qualquer forma.
Porque sou livre para voar.
Mas não penso em mim, somente,
Penso em ti, principalmente...
Eu não te prenderia,
Como jamais te surpreenderia,
Porque, querido, surpreender é trair
Fazer algo inesperado, te dar prazeres
Para depois te machucar... Não, eu não faria.
Faria em oculto, com a sua permissão,
Com seu consentimento. Eu te daria 
Minha liberdade de voar se você não tivesse medo 
De enfrentar as alturas em uma queda livre,
Para aprender a voar.

Solange Guimarães
Aracati/CE
09 mar. 2014

Raiz-de-poesia

Qual raiz de poesia
firme-me, desarmonia
solte-me, indisciplina
que as palavras sejam livres
solfejem versos ofegantes
gritem rimas elegantes
desentendidas e disformes
sintetizem-se em arrepios
tal primeiro beijo de menina
pois a poesia só traduz
o que não compreende
só conduz ao que sente
e que as palavras tentam domar
em vão
essa elucubração indecente!

Benedito Rodrigues
Coreaú/CE
09 mar. 2014

quinta-feira, 6 de março de 2014

Beleza campestre

Nos anos 50, existia o conhecido Haras Dulcinéia, localizado no município de Chorozinho no meu Ceará, e que até hoje relembra muitas histórias jubilosas, vitórias e premiações de seus cavalos de raça em Fortaleza e Rio de Janeiro, contadas e recontadas aos seus visitantes para o deleite de seus ancestrais.

Há seis anos esse espaço deu lugar a um privilegiado hotel fazenda, onde podemos encontrar simplicidade, bem estar e muito verde, num agradável contato com a natureza. A maioria das antigas baias dos animais foi substituída por confortáveis acomodações pra receber pessoas que - como eu - gostam de desfrutar de um ambiente campestre, tranquilo e acolhedor.

A pequena casa de seus antigos proprietários continua lá, nos convidando a visitar e conhecer um pouco da história desse casal de imigrantes europeus quando aqui chegaram. A velha mobília, lampiões e lamparinas, retratos nas paredes, troféus, louças de porcelana, pote e quartinha de barro, rádio antigo e fogão a lenha se destacam aos nossos olhos ávidos por surpresas.

E foi numa dessas tardes quentes de outubro, durante um divertido passeio de charrete que pude me encantar com bucólicas paisagens: Verdes e frondosas árvores que balançavam ao som dos ventos, pássaros que cantavam acompanhando essa doce melodia, num bailado feliz e harmonioso com os espertos saguis que corriam por entre as copas das mangueiras e cajueiros repletos de frutos amarelos. Ao longe, um carnaubal complementava essa valorosa área de preservação ambiental.

Agora vejo num pequeno ninho um pardal alimentando seu indefeso filhote e passo a contemplar ainda mais a natureza.

O entardecer vinha chegando e o magnífico espetáculo do pôr do sol  embelezava aquele momento corriqueiro e às vezes pouco apreciado...

A fulgurante estrela despediu-se rapidamente e nos brindou com a chegada da  lua cheia .Naquele  instante um misto de saudade e melancolia  brotaram em meu coração, lembranças contidas  no âmago de  meu ser...

Os coelhos passavam céleres para seus abrigos. As ovelhas silenciavam em seus currais. Galinhas, gansos e calopsitas também queriam se aquietar. Os cavalos já estavam em suas baias. Era chegada a hora de dormir.

O céu sublime, inspirador e o clarão da lua nos convidava  a uma noite de mais reflexões e agradecimentos  ao ser supremo  por esse momento efêmero e especial... 

Nice Arruda
Icó/CE

Castorina Pinto

Certa feita, cheguei a pensar que, em matéria de apelidos, Coreaú fosse insuperável. Desde tempos remotos, passando pela alteração do nome da Palma, nos idos de 1943 – época em que o folclórico Alberto Carmo, veemente adversário do nome de Penanduba, que reputava horroroso, acabou recebendo para sempre a alcunha de (...) Penanduba! –, até os tempos modernos, com a média ainda de quase um apelido per capita, desde os suportáveis e levemente jocosos até os de extremado mau gosto, capazes de destroçar a própria dignidade das pessoas, não há negar que Coreaú seja pródigo em se tratando de epíteto. No entanto, a cidade que ostenta a fama internacional de "Terra dos Apelidos" é Aracati, graças sobretudo a Castorina Pinto, a mais célebre "botadeira de apelidos" que a história já registrou.   

Há mais de uma década, Franzé Gomes havia-me contado a história de um causídico que, numa visita a Aracati para uma audiência judicial, receoso da mulher dos apelidos, apesar de toda discrição e esquivança, não conseguira furtar-se da verve perspicaz de Castorina. 

Nas voltas que a vida dá, na reunião passada da Academia Aracatiense de Letras, no Museu Jaguaribano, descobri que naquele mesmo prédio havia funcionado o hotel de Teófilo Pinto, cuja administradora era sua irmã, ninguém menos que Castorina Pinto. Fora, enfim, aquele exato casarão o palco do episódio do advogado. 

Castorina não perdoava ninguém. A um juiz de cabeça grande apelidou de "Cabeça de Comarca"; a um rapaz difícil de casar chamou de "Cédula Falsa"; nem Dom Manuel, filho ilustre de Aracati, escapou, pois tantos eram os adereços com que se apresentava que ficou apelidado de "Bolo Enfeitado"...

O advogado se hospedara no hotel de Teófilo Pinto, mas deu sorte de não topar com Castorina nos dois dias em que permaneceu na cidade. A "botadeira de apelidos" convalescia de um resfriado e resolvera não aparecer no hotel por uns dias. Como sabia da fama da mulher e de que ela morava na mesma Rua Grande, adotou o hóspede todo o cuidado possível para não ser avistado (e apelidado) por ela. Tentou se furtar o quanto pôde. Não andava pela rua, não conversava na calçada do hotel, não parava na portaria e se trancava todo o tempo que podia no quarto, com as janelas sempre fechadas. 

Depois que partiu no ônibus de volta para Fortaleza, o advogado ficou aliviado; afinal, talvez tivesse sido o único sujeito a andar pelo Aracati sem ter sido vítima dos apelidos de Castorina... 

Quando no dia seguinte, porém, ela apareceu no hotel, o recepcionista logo a interpelou:

– Finalmente alguém passou por esta terra sem levar um apelido seu, dona Castorina! 

Ao que ela, de pronto, respondeu:

– Quem? O "Rato de Gaveta"? 

Eliton Meneses
Fortaleza/CE
09 fev. 2014

Ouçam!

Ouçam!
Existe um santo perto de você.
Um santo dentro de você.
Ouça a voz da santidade,
Ouça o pecado que fala.

Ouçam!
Os santos que gritam e tem fome
Que lacrimejam suas dores
Que almejam o perdão
Buscam o Amor

Ouçam!
A música dos carros,
O canto das aves,
O ninar das crianças
O Santo Pecado.

Messias Pinheiro
Iguatu, 23/02/14

domingo, 2 de março de 2014

O Primo do Basílio

Mayara devia ser escrito com “i”, contudo Mayara adorava seu nome grafado com ípsilon. Bonita de cara e de um moreno agradável aos olhos. Uma pele macia embrutecida por seus trinta e poucos anos de vida. Um corpo ainda rígido, porém no qual reverberava os efeitos de um parto.

Administradora, pós-graduada. Bons rendimentos mensais. Casa própria (“toda no azulejo”, como dizia a vizinhança). Um marido que se não chegava a ser bonito, também não se podia dizer que era feio. Admitia-lhe um querer, entretanto, nunca sentira por ele o mesmo tesão que dispensara a Sylvio.

Sylvio – que ainda lhe tira o fôlego à mera lembrança – fora seu amor adolescente. O relacionamento acabara de uma forma trágica: aparecera uma moça grávida atribuindo-lhe a paternidade. Sem dúvidas, um grande choque para Mayara. Uma lástima! Optara, pois, pelo plano B: Basílio. Seu esposo fora imposto por uma travessura alheia, muito mais que por uma escolha sua.

Já são quase 10 anos de casamento (menos de um mês de namoro, 05 dias de noivado) e Mayara, em não raras vezes, sente asco de seu marido. Relações sexuais lhe rendem dupla dor: por não lhe ter tesão, não lubrifica; por não lhe ter amor, não se identifica.

Por cristã protestante que é, sente-se bastante culpada por não dispensar amor ao esposo, que recebera perante um ministro de Deus. Pensar em trair-lhe era algo incontinenti rejeitado, visto que “não seria direito”.

Porém as lembranças de Sylvio e todo o prazer que este lhe rendia – a despeito de regras comunitárias, agenciamentos sociais, sanções religiosas etc – povoavam sua vida consigo mesma. Sylvio era um espetáculo e a fazia sentir mulher. Até seu cheiro de suor a inebriava. Amava-o, certamente – roguemos que Basílio nunca venha a disso ter conhecimento.

Gostava de Basílio, isso era inconteste – porém não era amor e se amor fosse, seria apenas aquele amor que se devota a um irmão. Bom pai, rendimentos médios, companheiro, pouco ciumento; amava-a com uma certeza indubitável. Em que pese o “perfil do marido invejável” que desperta, inclusive, cobiça em suas amigas mais íntimas, o “amor” de Mayara por Basílio só sobrevivera aos primeiros meses de casório. Na cama, o esposo tinha um fôlego incomum e a frigidez da esposa nunca o saciava.

O inamado Basílio já tentara de muitas coisas para conseguir a atenção amorosa de sua esposa: viagens, visitas surpresas durante o dia no trabalho, flores em dias vulgares, afrodisíacos variados... 

Parece que Basílio ainda não aprendera que o maior afrodisíaco vem da carne. 

Em mesas de bar já derramara copiosas lágrimas em ombros de desconhecidos garçons (evitava os mesmos bares para não topar sem querer com garçons que já o acolheram – estratégia que, de quando em vez, mostrava-se falha).

Ambos sofriam com o desamor de Mayara: ele, pela incerteza do amor; ela, pela certeza do inamor.

Não obstante todo o aparato de sofrimento que permeia o desventurado casal, uma situação incauta emerge. Há alguns anos, Basílio achara de pedir para fazer sexo por trás. Pedira não, implorara. Insistira, rogara, humilhara-se. Uma situação extremamente constrangedora para o par. Basílio, por ter sido negado um pedido; Mayara por não conseguir conceder o mesmo pedido. Ambos choraram na mesma cama do desamor. A desdita instalara-se no bojo do casal com mais intensidade a partir daquele episódio. 

Apesar do vexatório evento, vez por outra Basílio, ainda que de início timidamente, solicita a posse às avessas de Mayara como prova de amor. Que amor?, indaga-se, dolorosamente, a mulher. Tinha muita vontade de ter vontade de dar-se assim para seu esposo. Mas qual, isso é coisa de puta, imagina se o pastor desconfia. Além do mais, como se submeteria a tal modalidade se não se agradava nem com posições convencionais com seu marido? E as amigas a invejavam por ter um “homem impecável”... aff, invejável era gozar na cama!

Forçoso é dizer que eu, contador desta história tenho imperfeições de memória e de coerência. Eis que me ocorre que Sylvio, amante de outrora, era primo de Basílio, configurando-se como amigo de portas abertas da casa, “daqueles de ter uma cópia da chave da porta da frente”, como diria um velho rodrigueano.

Fato é que Sylvio instalara-se, chegando de lugares ignorados, em um hotel perto da casa do casal sem amor. Boêmio e mulherengo, à guisa de um Don Juan del Marco contemporâneo, casara-se 03 vezes no interim que Basílio e Mayara contrataram casamento. Hoje, solteiro, vive de pensões que suas antigas esposas – deliberadamente – lhe dispensam.

Alguns contatos fortuitos de Sylvio com Mayara. Tentativas em vão. Em vão? Mayara já se molhava toda em vê-lo. Jamais imaginava (embora desejasse bastante!) que Sylvio ainda fosse tentá-la. Envergonhara-se da própria ingenuidade: embora primo de seu cônjuge, Sylvio era um canalha e nunca deixaria de ser. Tentá-la-ia até a sedução.

Mayara, como que uma Julieta Capuleto às avessas, regozijava-se em saber que ainda chamava a atenção do sexo oposto – há, porventura, alguém que não goste de sentir-se desejado? A despeito de tal interesse vir de um primo de Basílio, assim mesmo Mayara se regozijava.

Forçoso é concluir que acabara cedendo, se dando. Acabara cansada, melada e gozada tal qual em tempos de mocidade. Ah, os 20 anos revividos aos 30!

Já no segundo encontro, Sylvio, sem aviso prévio e aproveitando-se da posição (hierárquica?), possuíra-lhe as carnes avessamente. Uma queimação; uma dor irreconhecível, nunca dantes vivida, acalmada por um sussurro másculo à orelha; um prazer, não sem dor, indizível. Um prazer tão gostoso que, por assim dizer, envergonhara-se de senti-lo. Desejou mais, contudo constrangera-se mais ainda. Felizmente encontrara forças no próprio pudor para não solicitar ao seu algoz que fosse novamente enrabada.

Cedera. Aquilo a que mais deplorara em uma mulher acabara fazendo. E a figura do pastor lhe recobria a mente como uma nuvem negra tapa o sol instalando a escuridão. Ao lembra-se do ministro de Deus, imaginava que seu nome não mais devia ser Mayara, era puro demais para a impureza que agora representava. Devia chamar-se por adjetivos, não por referência a nomes próprios. 

Com seu esposo, que recebera mediante Deus, nunca fizera isso – o que, em todo caso, não deixaria de ser uma grande iniquidade. Traíra-lhe. Mas isso não doía tanto – ou pelo menos não era o que doía mais. Desamparava Mayara o fato de ter se deixado possuir avessamente, à revelia da natureza. Além do mais, dera a bunda a quem não lhe devotava amor, senão tesão. Seu esposo já lhe pedira tantas vezes como prova de amor e, tantas quantas lhe pedira, tantas lhe negara. Angústia maior era perceber que, a despeito de tudo, nunca havia sentido tamanho prazer, nunca se sentira tão plenamente mulher...
Daquele dia em diante, ver Basílio tornara-se uma tortura. Mais aversivo ainda era perceber, em proporção inversa à sua, a dedicação de seu companheiro e suas tentativas – de fato em vão – de conseguir-lhe o amor. Com ele fazia – e quando fazia – sexo. Literalmente sexo. Nada mais que sexo. Na hora do amor, muitas vezes inventava sussurros; doutras feitas, fazia contas referentes a seu trabalho; doutras, lembrava-se do almoço de amanhã; muito pouca vez concentrara-se; gozava quase nunca.

E Sylvio tornara-se cada vez mais íntimo na vida de Mayara. Era o homem que lhe fazia suspirar, lubrificar, gemer, sorrir.

E Mayara só lembrava que dia chegaria que Basílio lhe suplicaria novamente a posse invertida. Até quando conseguiria resistir a tamanha dor incorpórea?

27.abr.2012

Neto Muniz