Quero aqui falar de alguns personagens que habitam e constituem meu bairro. Moro em um
local periférico, um pouco afastado do centro da cidade, o que não nos impede
da convivência charmosa e harmoniosa de pessoas da mais alta singularidade.
Destacarei alguns desses seres ímpares.
O
primeiro deles, Seu Saúde, é um simpático senhor que durante toda sua vida
esforçou-se ao máximo para que seus feitos chegassem ao conhecimento e ao
usufruto de todos. Gosta ele de ser chamado por seu pomposo nome acrescido de
seu sobrenome: Seu Saúde Pública.
Esqueci
de mencionar o mais importante: Seu Saúde é músico, um verdadeiro artista!
Durante todo seu pernoitar neste mundo tentou, quase sempre em vão, que suas
partituras, suas letras, seus arranjos e suas melodias fossem do conhecimento
do grande público. Hoje, com sua saúde já debilitada, torce para que seus
versos sejam mais lidos, mais compreendidos e mais executados também.
Apesar
de ter sido assessorado por grandes intelectuais, ilustres nomes do pensar, Seu
Saúde nunca passou de um augusto desconhecido das grandes massas. Aliás, seu
nome até ecoa dos barracos favelizados às mansões imperiais. Porém é apenas seu
nome, e não a pessoa Saúde Pública e suas benesses artístico-culturais que faz
voz nas pessoas.
Não são
suas melodias faustosas e seus promissores efeitos que o público conhece, é
apenas seu nome, como uma promessa de uma utopia ainda distante.
Não
obstante sua simpatia e mesmo sua tímida aproximação com seu público em
potencial, Seu Saúde não conseguiu conquistar o grande amor da sua vida: uma
senhora às vezes rabugenta demais, às vezes sensível demais. Mas o que mais a
identifica é seu estranho e desdenhoso hábito de fazer promessas as quais não
consegue cumprir. Atende pelo promíscuo nome de Constituição Cidadã.
Ao
falarmos da vida desta quase caducante senhora que por toda sua vida passou por
incontáveis quedas e posteriores modificações – algumas radicais outras nem
tanto – até apodar-se de Constituição Cidadã, logo nos fazemos lembrar os
políticos de nosso país: tudo nos prometem, tudo nos garantem e nunca nos dizem
um "não". Apesar desta comparação, sei que D. Constituição vive
repetindo pelo bairro que não gosta de política, dizendo-se apartidária e
neutra.
Porém um
algo a mais tem em seus dizeres que a difere de um mero discurso panfletário.
Sua voz serena mas firme parece-nos ter a força de leis escritas. Se é ela quem
fala, logo nos tranquilizamos. Um dos argumentos mais convincentes do bairro,
quase um chavão, usado nas mesas de bar ou mesmo nas brigas entre vizinhos por
um pedaço a mais de varal é: "Foi D. Constituição que garantiu".
Agora vou
apresentar outro cidadão que também é um ícone do bairro onde moro. É daqueles sujeitos
que se conhece e nunca se esquece. Ou se gosta muito dele ou o deixamos a falar
a sós, com suas promessas mirabolantes e pouco modestas. Ele é um dos cidadãos
mais fanfarrões que se tem notícia. Com um discurso recheado de palavras
bonitas - a maioria retóricas e prolixas – apresenta-se aos outros quase como
uma panaceia dos problemas alheios. Diz ser capaz de resolver todos os dilemas
dos outros. Mais: se diz o caminho para a autonomia dos processos subjetivos.
Seu nome, Educação Brasileira.
Seu Educação
muitas vezes é tomado no bairro como uma pessoa arrogante. Sobretudo porque, ao
aqui chegar, também prometera, assim como D. Constituição, coisas que não pôde
cumprir. A diferença é que fizera juras de mudanças a longo prazo, pediu tempo,
o que lhe foi dado, mas não deu o devido retorno à comunidade, já que prometeu
liberdade e auto-suficiência ao fim de um processo. Tal processo, como já foi
dito, mostrou-se falho.
Já falei de
sua coincidência com D. Constituição. Agora vou lhes dizer de sua semelhança
com Seu Saúde. Os dois amam e nunca conquistaram a mesma mulher. Isso mesmo, D.
Constituição é também dona do coração de Seu Educação.
Seria uma
grande falha minha se não vos dissesse que esta senhora que a tudo promete é
casada com Seu Brasil Lesado Pelos Outros.
Dado a
imponência e a variedade de seus sobrenomes, Seu Brasil sabe que é a figura de
maior poder aquisitivo do bairro. O que não sabe é que sua fortuna poderia
multiplicar-se por infinitas vezes se se desse conta de sua riqueza em
potencial.
Seu Brasil
teve muitos filhos em sua espessa, lânguida e, por assim dizer, fértil vida. Em
sua imensa maioria canalhas, calhordas e cafajestes. Isso só pra não sair da
letra 'c'.
Cabe dizer
que, apesar de seu casamento longínquo e duradouro com D. Constituição, muitos
de seus filhos são frutos de outras "transações" maliciosas,
resultados de sua solteirice. Lascívias voláteis. O que não posso negar é sua
rara habilidade em dar nomes criativos para seus muitos filhos. Alguns nomes:
"Dívida Externa", "Subdesenvolvimento",
"Censura", "Povo Sem Educação", "Povo Sem Saúde",
"País do Futebol", "País do Futuro", "Seu Zé",
"D. Maria"...
Ao longo de
sua vida Seu Brasil teve um sem número de empregados que lhe passaram a perna.
Apesar de seu filho "Jeitinho Brasileiro" tentar ajudar-lhe, o marido
de D. Constituição sempre teve suas receitas – como diria um filho do casal,
Chico Buarque de Hollanda –, "subtraídas em tenebrosas transações".
Em sua vida
já vendeu de tudo para sobreviver: madeira, açúcar, escravos, ouro, café. Hoje
se vende em cada esquina, a cada passo inseguro e vacilante. Vende-se a preços
tabelados. Porém orgulha-se de vender a si mesmo e aos filhos ao sabor do preço
do petróleo. Além do mais, vende-se em dólar. Orgulha-se também de ter amigos
no exterior que lhe emprestam, sempre que precisa, dinheiro a juros irreais e
desumanos.
D.
Constituição tem-lhe um grande carinho e, apesar das tantas quebras e rinhas,
acha-se muito feliz em seu matrimônio. O que mais admira em seu marido são os
filhos dele e a capacidade que estes têm, contra todas as expectativas, de
amá-lo. Porém, reza que preferiria que a riqueza de Seu Brasil fosse melhor
repartida entre seus descendentes.
Seu enlace
amoroso deu-se nos primeiros anos da década de 1820. Em 1824 deu-se o casório,
com toda pompa e circunstância, tal como num matrimônio imperial. Apesar do
posterior rompimento dos dois com a Igreja Católica foi esta quem abençoou, em
nome de um Deus onipotente e onipresente, a união do nascente casal.
Seu Brasil
nunca traiu o matrimônio, apesar de quase nunca conseguir cumprir o que
prometera a D. Constituição. Esta, se não teve amantes fixos, teve pelo menos
duas puladas de cerca.
A primeira
delas foi com Seu Educação, na qual firmaram um tênue relacionamento que
prometia ser benéfico para todo o bairro. Como se sabe, tal relacionamento não
deixou outro fruto a não ser a desmoralização e o descrédito de Seu Brasil
perante sua comunidade.
A segunda
vez foi com Seu Saúde Pública, na qual viveram um intenso, porém finito grande
amor. Quiseram eles unirem-se mas D. Constituição o achava muito longe do povo,
destoando daquelas lindas palavras que ele lhe falava ao ouvido.
D.
Constituição até que gostou dos dois, mas sabia que não podia se desvincular de
seus laços afetivos e constitutivos de seu esposo. Preferiu, então, mais
uma vez, jogar toda a carga daquilo que não conseguia resolver pra cima de
outrem, que também, sabia ela, fugia-lhe à alçada de resolução.
Sobre o
espinhaço dilacerado de mágoas e descaminhos de Seu Brasil, D. Constituição
jogou-lhe as cargas de algo que ela só pode garantir através de palavras: que o
ideário utópico de Seu Saúde Pública chegue, de fato, às camadas mais populares
e que Seu Educação Brasileira consiga transformar em eventos práticos e teorias
prenhes suas falas retóricas e, por vezes, ingenuamente ufânicas.
Fez, pois, o
que sempre fizera: prometera; aliás, garantira! Sob as costas magras, ossudas e
velhacas de quem lhe desposara; sob um discurso pós-moderno de um Estado
neo-liberal transformou seu marido em um paternalista já fora de moda (que
ainda reclama um absolutismo setecentista), esquecendo-se dos modelos em voga,
contradizendo-se e vitimando-se a si mesma, fadando Seu Brasil ao insucesso,
quiçá ao aniquilamento.