sexta-feira, 6 de março de 2015

O GAVIÃO DA TARDE

Era coisa certa como, todo dia à tardinha, o sol se põe detrás da serra Grande. Primeiro o gavião. Sem mais nem ver lá estava ele sobrevoando o fundão da Igreja ou pousado nalguma das quatro janelinhas da torre, espreitando estrategicamente a presa cobiçada que haveria de surgir, em instantes; voando às cegas. A igreja, naqueles derradeiros anos da década de cinquenta ─ tempo dos acontecidos contados aqui ─ era o maior prédio da cidade. 

Não era dos grandes e, enquanto aguardava o momento do ataque, planava com elegância ao sabor dos ventos soprados das ribeiras do Coreaú. Olhando de baixo, dava pra ver bem sua plumagem luzidia, efeito dos últimos raios do sol poente; papo branco acinzentado, asas matizadas de preto nas pontas. Unhas-garras afiadas, bico de águia; pequeno! Todas as armas para uma caçada o danado tinha. Pelo registro da minha memória batia com as características do gavião Carijó, o popular pega-pinto, muito encontrado naquelas paragens ribeirinhas do Coreaú. O causo acontecia todo dia, quando o sol retirante dourava o telhado das casas simples da cidadezinha e as sombras, da noite anunciada, escureciam a faixa de mata verde que, naquele tempo, ainda margeava o rio. Era lá, nos socavões do Poço do Carro que, aninhados, provavelmente, numa vetusta mutambeira, esperavam pelo jantar do dia sua senhora gavião e sua prole. Era sempre pra lá que ele voltava toda vez que fisgava um guandira.

Naquela vila, costumeiramente sem novidades, um expectador solitário de olhos voltados para o céu, postava-se, de pé na calçada de sua bodega, para testemunhar mais um espetáculo da natureza: a luta pela sobrevivência. Surgia, um após outro, das brechas entre a parede e o telhado da igreja. Era Jaime, que da calçada de sua bodega aguardava tudo atentamente. O sinal de que, em instantes, começaria o espetáculo do dia: o pega-pega nos céus da Palma entre o gavião, predador, e o morcego, sua presa. Eu, menino com nove anos de curiosidade, tornei-me com Jaime, a plateia diminuta daquele drama de vida e morte. Alguns passantes paravam e desinteressados perguntavam: “O quê vocês estão olhando?” Jaime, respondia: “nada não, só estamos apreciando o céu.” O descurioso, sem nada falar, baixava a cabeça e continuava seu destino, rumo à rua de cima ou à rua de baixo, muita vez descambando para o “rabo da gata”. Outros, nem sequer atinavam para o que se sucedia no céu. E assim, éramos apenas eu, o Jaime, o gavião e os morcegos, assistentes e protagonistas daquele drama da tarde.

“Veja lá, veja lá!” Alertava Jaime. O gavião em voo rasante mergulhava atrás do morcego que, em fuga desesperada, se esquivara de seu predador e, em voo cego guiado por seu bio-sonar, numa guinada à direita, rumava para a Ponte Velha, abrigando-se no sombroso cajueiro do Chico Barra, vivente de tempos remotos daquele sítio. 

As saídas dos morcegos do esconderijo se tornavam mais frequentes à medida que escurecia, enquanto, o gavião demonstrando pressa para fisgar sua presa antes que anoitecesse de vez, fazia voos rasantes em volta da igreja esperando o momento certo para atacar. O pega-pega se repetia com lances cada vez mais ousados de predador e presa. Cada um com suas estratégias de sobrevivência: os morcegos voando em bandos se espalhavam tomando diferentes direções para confundir seu algoz. Por seu lado, o gavião respondia com a tática de perseguir aquele que parecia mais atarantado ou mostrava tibieza no voo. Cumpria-se, também, entre os morcegos, o ditame da seleção natural de Darwin: na luta pela sobrevivência os mais aptos têm mais chances. Foi assim que o gavião obteve o primeiro sucesso na caçada daquele dia. Com a presa firme nas unhas fazia meia volta e rumava ao encontro da família faminta.

Quando viu o que aconteceu, Jaime exclamou lastimoso: “Ah! desta vez ele pegou o bichinho.” Torcia pelos morcegos, enquanto eu vibrava com o sucesso do gavião. Na verdade, naqueles tempos, os morcegos não desfrutavam de boa reputação comigo. Havia toda aquela lenda que os associava a vampiros (chupa-sangue) transmissores da raiva; coisa que em nada agradava a um menino de nove anos cheio de medos, que muita vez viu no pescoço dos animais (gado, criação, jumento, etc.) as marcas sanguinolentas deixadas pelos morcegos. Sem contar que os achava feiosos e asquerosos. Hoje, não mais vejo os morcegos desta forma, afinal nem todo morcego é vampiro; apenas três das quase mil espécies existentes são hematófagas. Eu e Jaime nunca nos perguntamos o porquê da preferência por um ou por outro. Coisa de senhor que via menino como gente grande.

Não demorou muito e o gavião estava de volta ao palco do embate. Mal deu tempo, um morcego surgir da toca e foi apanhado sem tempo para esquivas. O carijó voou alto, fazendo a curva sobre a praça da matriz com a vítima presa às garras; veloz, planou em linha reta rumo a seu abrigo. Anoitecia! Sobre a praça, no céu, fiapos esparsos de nuvens púrpuras prenunciavam o badalar do sino anunciando o fim do dia. Missão cumprida, filhotes saciados, agora era esperar o dia seguinte, quando o gavião voltava e o espetáculo se repetiria na monotonia do dia a dia da pacata e entardecida Palma. Já se viam as filhas de Maria, com andar contrito se achegando à Igreja para os ritos da novena de Nossa Senhora de Fátima, já que era maio, o mês de Maria. Nada mais a acontecer, Jaime retornava para seu balcão e eu para casa. 

Hoje me pergunto: o gavião peralta ainda voa nos céus da minha terra, ou só no céu da minha memória? Os morcegos ainda se escondem nos sótãos da velha igreja? Acredito que sim pois, são diabinhos católicos como eram as andorinhas de Rubem Braga. Eu me perdi na lapa do mundo; desaprendi por vinte anos o caminho de volta à minha terra e, agora, antes que as lembranças se apaguem da minha memória, escrevo em mal traçadas linhas as coisas que se passavam despercebidas dos outros, mas que tanto significaram pro menino, que embora homem feito, teima não crescer. O Jaime, seus fregueses, os frequentadores de seu banco e suas três reclusas mulheres (esposa e cunhadas) se foram, fazer companhia a Noel. 

Hoje, a Palma é apenas uma miragem na memória dos saudosistas. A serra da Meruoca continua azul, depois de lavada pela chuva. O sino repica, não mais pros anjinhos que morriam por falta de angu, mas para lembrar que a Igreja ainda é o maior prédio da cidade e a casa da Pietá. Coreaú resiste modernosa, com seus carros e suas motos velozes e ruidosos no chão de suas ruas e ninguém mais se dá conta das nuvens tristonhas de fim de tarde que ainda vagueiam no céu da praça.

Mardone França
Coreaú - CE

Nenhum comentário: