terça-feira, 16 de setembro de 2014

NO INFINITO AZUL DO TEU OLHAR...

Otuada Canteça

Há tempos muito idos, sofri o prazer de sentir os sintomas da minha primeira paixão. Foi por Isabel, numa manhã de sábado de luz quente e céu azul sem um fiapo de nuvem, sequer. A praça onde fica o Colégio Estadual era larga de fundo e de frente, contornada por casarões aristocráticos de famílias tradicionais da cidade. Predominavam as sombras espaçosas e acolhedoras dos fícus (benjamin), quase sempre fincados com as raízes expostas estufando os mosaicos das calçadas.

Os sábados de matinés no Colégio era a ocasião de encontro das alunas com os alunos, visto que as aulas não eram mistas: as meninas estudavam pela manhã e os meninos à tarde. Minha amiga Felícia estudava na mesma turma de Isabel, a garota mais bonita e cobiçada pelos rapazes. As matinés eram permitidas pelo Monsenhor Nicácio, diretor do Colégio, um Padre à moda antiga, severo, que não hesitava em usar da truculência para manter a ordem e a disciplinas nas hostes do Colégio. Isabel e Felícia eram assíduas frequentadoras das matinés e sempre estavam juntas, bem diferente uma da outra. Isabel, no fulgor dos seus quinze anos, era branca, esguia, de pele rosada que realçava seus olhos azuis num rosto angelical modelado por vastos cabelos loiros esvoaçantes. Felícia, miúda, morena, bustos fartos que a faziam parecer arredondada. Comunicativa, tinha um sorriso cativante.

Sempre olhei para Isabel, só por olhar. Sabia que não era pro meu bico. Afinal, o que se passava pela minha cabeça era que os cabeludos do Colégio que formavam o conjunto que tocavam nas matinés as músicas da Jovem-Guarda, eram os seus preferidos. Nas matinés, as meninas deixavam seus uniformes escolares em casa: blusa branca, gravatinha e saia plissada grená e botavam seus vestidos de sair. 

Por minha amizade com Felícia, em algumas ocasiões fiquei em rodas de conversa com a presença de Isabel. Foi quando comecei a observá-la melhor. Era contida, quase tímida, inteligente, falava pouco. Não esboçava nada do convencimento que se espera de moças bonitas e disputadas. Diretamente, nunca troquei palavras com Isabel, era quase sempre conversa de grupo de jovens.

As matinés se repetiam com o conjunto tocando e cantando as músicas de Roberto e Erasmo Carlos, Wanderley Cardoso, Jerry Adriani, Wanderléa e outros ídolos da Jovem-Guarda que faziam sucessos nos idos dos anos sessentas. Antes do conjunto começar a tocar, formavam-se grupos sob as sombras acolhedoras dos fícus, ocasião que alunos e alunas ensaiavam aproximação e nasciam as paqueras e os namoros.

Isabel não era de paquera fácil, apesar dos assédios. Certa vez, perguntei a Felícia por que Isabel, tão bonita, não tinha namorado.

- Ah, André, ela não gosta muito do jeito dos meninos do Colégio, diz que são chatos e conversam muita besteira. Ela é minha amiga, mas é meio bestinha, não quer qualquer um, não. Disse, outro dia, que gosta do teu jeito como falas, te acha sério e inteligente.

- Felícia! ela falou isso mesmo?

- Estou falando sério, André, ela tem uma quedinha por ti.

Essa informação alterou o modo como passei a ver Isabel. Comecei a sentir uma admiração especial por ela. Os sábados de matinés passaram a ter outro significado para mim, queria mesmo era ver Isabel. Sempre que conversava com Felícia, sem querer demonstrar interesse, puxava assunto que levasse a Isabel. Felícia entendeu meu interesse e passou a ser o meu pombo-correio. Certo dia, encontrei-me com Felícia no cinema. Assim que me viu, foi logo falando:

- André, vem cá. Tenho uma coisa pra te dizer e sei que vais gostar. Fazendo-me de
desentendido, perguntei:

- É sobre o quê?

- É sobre Isabel, ela disse que quer se encontrar contigo no próximo sábado, na matiné.

Essa conversa aconteceu na sessão da tarde de domingo do Cine Esplanada. Passei a semana inteira com grande ansiedade e confesso com certo medo deste encontro a sós com a garota mais bonita do Colégio. Pensei! O que vou falar! Será se ela quer namorar comigo, ou só quer ser minha amiga? De qualquer jeito, já era um grande privilégio receber a atenção da lourinha de olhos azuis.

Finalmente, chegou o bendito sábado. Vesti minha melhor roupa domingueira, dei uma caprichada na cabeleira (usava cabelos bem compridos), roubei um pouco de perfume do meu irmão e lá vou eu ansioso e esperançoso, aos meus dezessete anos, descolar a minha primeira namoradinha. Definitivamente descobri que estava apaixonado, de verdade, por Isabel.

Por volta das nove horas da manhã daquele sábado cheguei à Praça, que já estava com grupinhos espalhados pelas sombras, mas não vi nem Isabel e nem Felícia. Um friozinho na barriga prenunciava minha decepção: ela não veio! Fiquei uns quinze minutos que não tirava os olhos da rua por onde Isabel costuma vir. Cada menina que apontava na rua, e nada de Isabel. Minha esperança só diminuía. Toda preparação e treinamento da semana estavam sendo engolidos pela ansiedade da espera. Até que me distrai um pouco conversando com alguns colegas e tirei por um instante os olhos da rua e fui surpreendido com a chegada das duas à Praça. Isabel estava linda, dava a entender que também se arrumou mais que das outras vezes. Vestia saia e casaquinho de organza azul celeste de mangas curtas com elásticos que as prendiam um pouco abaixo dos ombros, imprimindo-lhe leveza e graça. Estava divinamente bela, custei acreditar no que estava vendo. Confesso que tremi nas pernas, afinal era a minha primeira investida com uma garota de quem gostava de verdade.

De repente, Felícia faz um sinal para eu ir onde elas estavam. Vai lá André e faz bonito, ordenei-me. Aproximei-me, cumprimentando-as com um Oi, tudo bem?

- Tudo bem André, responderam as duas numa só afinação.

- A matiné parece que vai ser boa. O conjunto ensaiou as músicas do último LP do Roberto Carlos para tocar hoje, falei para puxar assunto.

- Ah! tomara que eles cantem “E que tudo mais vá pro inferno”, desejou Felícia.

- E você Isabel, o que gostaria que eles cantassem? Perguntei.

- Adoro a música “Olha nos meus olhos”, espero que eles cantem também esta música.

- Nosso gosto musical combina, também acho esta música uma das mais bonitas do Roberto.

Felícia se desculpou e disse que precisava conversar com as amigas que estavam na calçada se preparando para entrar no Colégio e nos deixou a sós. Respirei fundo e cavei na memória o ensaio da semana, mas não adiantou, saiu tudo diferente, fluiu no improviso mesmo. Conversamos um pouco sobre os estudos, perguntei se ela iria ao show de Wanderléa no Cine Esplanada. Respondeu que o pai dela não deixaria, pois é muito cuidadoso com ela. Informei que iria, era uma oportunidade de conhecê-la pessoalmente.

- Como esperado o conjunto começou a tocar e a gritaria foi geral. Convidei-a para entrar o Colégio para assistirmos de perto, mas preferiu ficar onde estávamos que dava para ouvir bem e poderíamos conversar longe do barulho.

- Hoje estou um pouco triste, falou Isabel depois de um momento de silêncio.

- Qual a razão de você estar triste? Afinal, estamos aqui, ouvindo música, se divertindo.

- Ah! deixa pra lá, depois lhe conto. Sabe André, te acho diferente destes meninos do Colégio, você é calado, não se mete com os bagunceiro do Colégio. Você tem uma palestra boa. Conversar com você é muito agradável, você tem senso de humor.

- É o meu jeito, sou mais quieto e não gosto de me mostrar.

- Você não vai assistir ao filme que vai passar amanhã? A gente até poderia se encontrar
lá.

- Não vou poder, amanhã à tarde já estarei longe daqui. Por falar nisso, tenho uma coisa para lhe contar. Foi por isso que te convidei para me encontrar aqui hoje.

- Nossa, que mistério é esse, me conte logo.

- É a causa da minha tristeza. Vou ter que deixar as minhas amigas, o Colégio que gosto tanto e agora que começamos a conversar se entender... Tudo mal começa e já acaba, é triste. Meu pai é oficial do Exército e foi transferido para Florianópolis. A viagem será amanhã. Não acho muito bom isso de estar sempre se mudando de cidade, a vida de militar é assim: quando se está acostumando com a cidade outra transferência. Ao ouvir este desabafo de Isabel fiquei paralisado, sem ação, sem saber o que dizer. Procurei me recobrar do choque daquela noticia. Mas logo agora que tivemos o nosso primeiro encontro e já será o último. Por essa eu não esperava. Agora quem está triste sou eu.

- Pois é André, a vida é cheia de caprichos, tenho que acompanhar minha família.

Ficamos parados e mudos por alguns minutos, enquanto ouvíamos a música "Olha dentro dos meus olhos..." parecia escolhida como tema da nossa história que nem sequer começou. Como que hipnotizado, fitei demoradamente os olhos de Isabel sem nada dizer. Até que ela, tocando de leve no meu braço me trouxe à realidade, perguntando:

- O que você tanto ver, olhando assim nos meus olhos?

- Estou vendo estrelas.

- Rá, Rá Rá. Estrelas! Onde está vendo estrelas neste dia de sol forte e céu azul?

- Numa inspiração exasperante e de improviso, fixei novamente meu olhar penetrante em seus olhos e declamei:

- No firmamento azul do teu olhar.

Enquanto isso, continuava tocando:
Olha dentro dos meus olhos,
Vê quanta tristeza,
Eu sofri por ti, por ti...
Era uma saudade imensa
De alguém que pensa
E morre por ti, por ti, por ti...
De repente, o rosto de Isabel ficou mais corado do que naturalmente já era e duas lágrimas translúcidas escorrem dos seus olhos.

- Coisa mais linda, você também é poeta, nunca ninguém falou assim para mim, nunca vou esquecer este momento.

Ficamos parados, silenciosos, emocionados, até que ela num gesto inopinado e de coragem beijou meu rosto e saiu correndo pela mesma rua que a vi chegar com a elegância de uma gazela e a determinação de um general dizendo: te amo, te amo, adeus André. Eu a acompanhei com meu olhar enquanto ela corria. Seus cabelos loiros esvoaçantes ao sabor do vento e como que por uma cumplicidade divina parecia que o céu havia descido à terra vestindo-a de azul. Na esquina da rua que levava à sua casa, ela parou, olhou para trás, acenou e desapareceu. A música continuou tocando. Como a vida, o show tem que continuar. Duas lágrimas quentes rolaram no meu rosto pelo amor que poderia ter sido e não foi. esqueci .

- Nunca esqueci aqueles olhos. Nunca mais fiz poesia...

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