quinta-feira, 27 de março de 2014

Talvez

Em algum lugar do globo um garotinho de onze anos ouve Nirvana trancado num quarto sombrio. Sua mãe vê-lhe um futuro macabro: imagina-o dali a dois anos com uma ampola na mão à beira de uma overdose lisérgica.

Alguns bairros após, indo em sentido sul, um casal torce o nariz perante a cor do médico que atende ao filho de ambos. Creditam seu diploma à determinada política de cotas universitárias implantada por determinada Estado jurídico de algum país. No mesmo hospital, um quarto e um corredor depois, um triste palhaço tenta, em vão, alegrar uma garotinha soropositiva.

Partindo de onde estamos, treze países a noroeste, uma linda menina loira, de olhos cuja cor se define pela intensidade da luz do sol, dá pipoca aos gorilas no zoológico. Lá fora, um ruivo menino pede esmola para comprar o almoço de ontem.

Longe dali, talvez bem perto de onde esteja eu, um marido espanca sua esposa na frente dos filhos por ela ter gasto o dinheiro de um incentivo do governo comprando material escolar para as crianças. Ele queria comprar cachaça!

Nas proximidades de um aeroporto famoso em todo o mundo, uma menina de doze anos (com corpo ainda de oito) felicita-se por ter tido sua menarca – fora a primeira de sua turma. Na mesma casa, no próximo quarto a leste, sua irmã está desesperada porque a sua ainda não veio... está nua no quarto, em pé, com as mãos cobrindo o rosto, deixando à mostra todo o seu corpo. Pela janelinha do banheiro, também já quase nu, seu padrasto observa tudo.

Alguns graus de latitude norte a menos, um adolescente entra na farmácia mais próxima para comprar cigarros. A moça o atende muito bem e eles trocam telefones. Em sentido oeste, na próxima universidade pública, um grupo de estudantes fuma maconha e questiona-se sobre seu presidente (seria ele um fascista de esquerda ou um fascista de direita?). Os mais exaltados tramam planos para derrubá-lo do poder.

Perto do centro geodésico, onde o sol é mais forte, quatro homens jogam baralho há quatro dias sem parar. Todos os quatro já perderam todo o dinheiro que tinham nas apostas do jogo e mesmo assim continuam a jogar. Mas onde está o dinheiro que trouxeram? “Algum negro deve ter roubado”, pensam rapidamente para não perderem a concentração no jogo. E continuam a jogar e a perder dinheiro, todos os quatro.

No exército de um país em guerra dois soldados homossexuais transam dentro da sala do general. A mulher de um deles chega à sala e acompanha tudo. Lá fora, sob a chuva, um impaciente sargento berra com seus soldados na trincheira que armaram para o inimigo. Seus soldados, contudo, não parecem lhe conferir muita atenção, já que o jogo de futebol na televisão está bem mais interessante.

A alguns muitos países a sudoeste, um casal, (ela de doze, ele de quatorze) perde, mutuamente, sua virgindade. Ela, ansiosa, pensa em como pedirá à mãe para comprar-lhe anticoncepcionais; Ele, orgulhoso, pensa no orgulho que o pai lhe terá. No próximo continente, em direção contrária ao nascimento do sol, um garoto de dez anos masturba-se ao espiar, escondido, sua mãe a trocar de roupas. Materializa assim, ainda de que de forma canhestra, seu Complexo de Édipo.

No próximo país que estiver nevando neste momento, uma garota lê Dostoievski e masturba-se ao pensar no drama que é o humano. Em qualquer lugar, no exato momento em que atinge o orgasmo, uma criança morre de fome.

Dali a muitas e longas milhas, um casal de 65 anos transa e fuma ouvindo Mozart e Bach. Os dois gozam e fumam muito. Não veem graça em posições convencionais e continuam a inventar as suas próprias. Continuam a fumar e a gozar bastante.

Mais uma criança morre de fome agora enquanto, neste exato momento em que tu me lês, em uma grande empresa multinacional, um dos diretores trai sua esposa com o faxineiro.

Num convento católico de um país de maioria budista, uma freira espia os futuros padres a banharem-se nus no rio. Perto dali (e talvez muito mais perto daqui) um padre e um psicólogo trocam confidências... alheias!

Alguns muitos graus ao sul, dois irmãos brigam pela herança pobre que seu falecido pai lhes deixara. Repetem, agora, quase adultos, as brigas que mantinham quando crianças pelos times de botão ou pelo controle da televisão.

Quase adultos também, um casal de namorados brinca de marido e mulher na frente do gato de um deles. O felino observa tudo atentamente, talvez presenciando o maior ato humano: a consumação do amor! Ou talvez simplesmente não entendendo nada...

Ao meu redor, o mundo transborda de acontecer. Incha-se de tanta vida: lágrimas, gozos, suores, sol, mar, dores, angústias... vida. Talvez tudo isso realmente esteja acontecendo enquanto a ponta de minha caneta desliza suave e sem pausa pela superfície branca do papel.

Neto Muniz
08.04.2011

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