De uma hora para outra, percebi a estante branca que tenho no meu quarto. Cheia de livros, papéis, apostilas, pastas. Percebi que minha vida acadêmica foi influenciada justamente por esta estante.
Era uma estante velha e enferrujada. Meu pai havia comprado a para colocar peças de computador. As peças um dia foram embora e a pobre estante ficou sem serventia. Minha genial mãe teve a ideia que mudaria minha vida daí em diante: resolveu que a pintaria de branco e colocaria no meu quarto. Lembro fui com ela comprar a tinta e depois levamos, nós duas, aos olhares dos vizinhos a coitada da estante para o homenzinho que a pintaria. Umas três horas depois, o homem enviou seu filho até minha casa para avisar que a estante já havia sido pintada. Fui correndo vê e me apaixonei. Ela estava linda. Alva, ereta e parecia até que sorria para mim. Mais uma vez a carregamos diante dos olhares dos vizinhos. Colocamos no meu quarto e comecei a posicionar meus livros. Em uma prateleira ficariam os livros da escola, em outra os livros de historinha. Lembro que cheguei a pegar sutilmente alguns livros da estante do meu pai, só para a minha ficar mais cheia.
Um dos dias mais felizes foi quando uma tia minha, que na época era diretora de um colégio, enviou para mim uma caixa de livros. Eram muito livros, de todos os tipos. Contos, crônicas, poesias. Foi com estes livros que conheci Pedro Bandeira, Ruth Rocha, Ana Maria Machado. Foram os dias mais deleitosos da minha vida. Só vivia do lado da caixa. Todos os dias eu esparramava os livros no chão, escolhia um para ler e deitava, no chão mesmo, para ler. Meu pai antes de ir para o trabalho sempre tecia algum elogio, e eu ficava feliz por matar dois coelhos de uma cajadada só, fazia algo que me dava prazer que era a leitura e ainda dava orgulho ao meu pai. Minha mãe às vezes vinha perguntar se não queria comer algo, se não estava exagerando. Eu não queria saber de mais nada. Só ler, ler, ler. A menina que limpava a minha casa já nem mais varria a sala onde eu ficava deitada com os livros, não havia nem espaço para sentar no sofá, por que os livros que já havia lido eu os colocava lá. E agora que eu tinha uma estante, poderia colocar todos estes livros lá e deitar na minha cama e ficar admirando-os como se olhasse para o mais belo quadro de um pintor muito famoso.
A estante sempre acompanhou minha evolução. Um dia ele comportou os meus livros de fundamental, até que tive que tirá-los e colocar os do ensino médio e toda aquela papelada do pré-vestibular. Quando passei no vestibular, resolvi doar alguns livros e deixar outros. A estante ficou um pouco vazia, mas começaram a surgir as apostilas xerocadas da faculdade, as pastas de documentos, as pastas de certificados, as pastas com cartinha dos admiradores, as pastas com confissões.
Recentemente resolvi desafogar a estante. Tirei alguns livros que vieram na super caixa e resolvi doá-los para a meninada do bairro. Coloquei um monte de livro dentro de uma sacola e comecei a bater de porta em porta. Como não sou uma pessoa que expressa bem os sentimentos verbalmente, eu simplesmente jogava os livros no braço das crianças e dizia “pega pra tu” e saia. Talvez eles tenham sentido a mesma alegria que eu senti naquele dia que agora é tão distante. Talvez eu com esse ato tenha mudado a vida dessas crianças. Talvez...
E hoje penso. Todos deveriam ter uma estante de livros em seu quarto. Deveria ser uma lei da Constituição. Não há nada mais eficiente contra a violência, contra as drogas, contra a evasão escolar. É um remédio eficaz para a saúde a curto e longo prazo. Boa parte dos meus conhecimentos deve-se justamente a uma estante que comportou vários saberes e que hoje está um pouco torta de tanto segurar o mundo por mim.
Mariana Santiago
Um comentário:
Muito bom, Mariana!
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