domingo, 2 de março de 2014

O Primo do Basílio

Mayara devia ser escrito com “i”, contudo Mayara adorava seu nome grafado com ípsilon. Bonita de cara e de um moreno agradável aos olhos. Uma pele macia embrutecida por seus trinta e poucos anos de vida. Um corpo ainda rígido, porém no qual reverberava os efeitos de um parto.

Administradora, pós-graduada. Bons rendimentos mensais. Casa própria (“toda no azulejo”, como dizia a vizinhança). Um marido que se não chegava a ser bonito, também não se podia dizer que era feio. Admitia-lhe um querer, entretanto, nunca sentira por ele o mesmo tesão que dispensara a Sylvio.

Sylvio – que ainda lhe tira o fôlego à mera lembrança – fora seu amor adolescente. O relacionamento acabara de uma forma trágica: aparecera uma moça grávida atribuindo-lhe a paternidade. Sem dúvidas, um grande choque para Mayara. Uma lástima! Optara, pois, pelo plano B: Basílio. Seu esposo fora imposto por uma travessura alheia, muito mais que por uma escolha sua.

Já são quase 10 anos de casamento (menos de um mês de namoro, 05 dias de noivado) e Mayara, em não raras vezes, sente asco de seu marido. Relações sexuais lhe rendem dupla dor: por não lhe ter tesão, não lubrifica; por não lhe ter amor, não se identifica.

Por cristã protestante que é, sente-se bastante culpada por não dispensar amor ao esposo, que recebera perante um ministro de Deus. Pensar em trair-lhe era algo incontinenti rejeitado, visto que “não seria direito”.

Porém as lembranças de Sylvio e todo o prazer que este lhe rendia – a despeito de regras comunitárias, agenciamentos sociais, sanções religiosas etc – povoavam sua vida consigo mesma. Sylvio era um espetáculo e a fazia sentir mulher. Até seu cheiro de suor a inebriava. Amava-o, certamente – roguemos que Basílio nunca venha a disso ter conhecimento.

Gostava de Basílio, isso era inconteste – porém não era amor e se amor fosse, seria apenas aquele amor que se devota a um irmão. Bom pai, rendimentos médios, companheiro, pouco ciumento; amava-a com uma certeza indubitável. Em que pese o “perfil do marido invejável” que desperta, inclusive, cobiça em suas amigas mais íntimas, o “amor” de Mayara por Basílio só sobrevivera aos primeiros meses de casório. Na cama, o esposo tinha um fôlego incomum e a frigidez da esposa nunca o saciava.

O inamado Basílio já tentara de muitas coisas para conseguir a atenção amorosa de sua esposa: viagens, visitas surpresas durante o dia no trabalho, flores em dias vulgares, afrodisíacos variados... 

Parece que Basílio ainda não aprendera que o maior afrodisíaco vem da carne. 

Em mesas de bar já derramara copiosas lágrimas em ombros de desconhecidos garçons (evitava os mesmos bares para não topar sem querer com garçons que já o acolheram – estratégia que, de quando em vez, mostrava-se falha).

Ambos sofriam com o desamor de Mayara: ele, pela incerteza do amor; ela, pela certeza do inamor.

Não obstante todo o aparato de sofrimento que permeia o desventurado casal, uma situação incauta emerge. Há alguns anos, Basílio achara de pedir para fazer sexo por trás. Pedira não, implorara. Insistira, rogara, humilhara-se. Uma situação extremamente constrangedora para o par. Basílio, por ter sido negado um pedido; Mayara por não conseguir conceder o mesmo pedido. Ambos choraram na mesma cama do desamor. A desdita instalara-se no bojo do casal com mais intensidade a partir daquele episódio. 

Apesar do vexatório evento, vez por outra Basílio, ainda que de início timidamente, solicita a posse às avessas de Mayara como prova de amor. Que amor?, indaga-se, dolorosamente, a mulher. Tinha muita vontade de ter vontade de dar-se assim para seu esposo. Mas qual, isso é coisa de puta, imagina se o pastor desconfia. Além do mais, como se submeteria a tal modalidade se não se agradava nem com posições convencionais com seu marido? E as amigas a invejavam por ter um “homem impecável”... aff, invejável era gozar na cama!

Forçoso é dizer que eu, contador desta história tenho imperfeições de memória e de coerência. Eis que me ocorre que Sylvio, amante de outrora, era primo de Basílio, configurando-se como amigo de portas abertas da casa, “daqueles de ter uma cópia da chave da porta da frente”, como diria um velho rodrigueano.

Fato é que Sylvio instalara-se, chegando de lugares ignorados, em um hotel perto da casa do casal sem amor. Boêmio e mulherengo, à guisa de um Don Juan del Marco contemporâneo, casara-se 03 vezes no interim que Basílio e Mayara contrataram casamento. Hoje, solteiro, vive de pensões que suas antigas esposas – deliberadamente – lhe dispensam.

Alguns contatos fortuitos de Sylvio com Mayara. Tentativas em vão. Em vão? Mayara já se molhava toda em vê-lo. Jamais imaginava (embora desejasse bastante!) que Sylvio ainda fosse tentá-la. Envergonhara-se da própria ingenuidade: embora primo de seu cônjuge, Sylvio era um canalha e nunca deixaria de ser. Tentá-la-ia até a sedução.

Mayara, como que uma Julieta Capuleto às avessas, regozijava-se em saber que ainda chamava a atenção do sexo oposto – há, porventura, alguém que não goste de sentir-se desejado? A despeito de tal interesse vir de um primo de Basílio, assim mesmo Mayara se regozijava.

Forçoso é concluir que acabara cedendo, se dando. Acabara cansada, melada e gozada tal qual em tempos de mocidade. Ah, os 20 anos revividos aos 30!

Já no segundo encontro, Sylvio, sem aviso prévio e aproveitando-se da posição (hierárquica?), possuíra-lhe as carnes avessamente. Uma queimação; uma dor irreconhecível, nunca dantes vivida, acalmada por um sussurro másculo à orelha; um prazer, não sem dor, indizível. Um prazer tão gostoso que, por assim dizer, envergonhara-se de senti-lo. Desejou mais, contudo constrangera-se mais ainda. Felizmente encontrara forças no próprio pudor para não solicitar ao seu algoz que fosse novamente enrabada.

Cedera. Aquilo a que mais deplorara em uma mulher acabara fazendo. E a figura do pastor lhe recobria a mente como uma nuvem negra tapa o sol instalando a escuridão. Ao lembra-se do ministro de Deus, imaginava que seu nome não mais devia ser Mayara, era puro demais para a impureza que agora representava. Devia chamar-se por adjetivos, não por referência a nomes próprios. 

Com seu esposo, que recebera mediante Deus, nunca fizera isso – o que, em todo caso, não deixaria de ser uma grande iniquidade. Traíra-lhe. Mas isso não doía tanto – ou pelo menos não era o que doía mais. Desamparava Mayara o fato de ter se deixado possuir avessamente, à revelia da natureza. Além do mais, dera a bunda a quem não lhe devotava amor, senão tesão. Seu esposo já lhe pedira tantas vezes como prova de amor e, tantas quantas lhe pedira, tantas lhe negara. Angústia maior era perceber que, a despeito de tudo, nunca havia sentido tamanho prazer, nunca se sentira tão plenamente mulher...
Daquele dia em diante, ver Basílio tornara-se uma tortura. Mais aversivo ainda era perceber, em proporção inversa à sua, a dedicação de seu companheiro e suas tentativas – de fato em vão – de conseguir-lhe o amor. Com ele fazia – e quando fazia – sexo. Literalmente sexo. Nada mais que sexo. Na hora do amor, muitas vezes inventava sussurros; doutras feitas, fazia contas referentes a seu trabalho; doutras, lembrava-se do almoço de amanhã; muito pouca vez concentrara-se; gozava quase nunca.

E Sylvio tornara-se cada vez mais íntimo na vida de Mayara. Era o homem que lhe fazia suspirar, lubrificar, gemer, sorrir.

E Mayara só lembrava que dia chegaria que Basílio lhe suplicaria novamente a posse invertida. Até quando conseguiria resistir a tamanha dor incorpórea?

27.abr.2012

Neto Muniz

Um comentário:

Anônimo disse...

Tão neto, essa crônica.

Parabéns!